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Ensino religioso em escolas públicas pode gerar discriminação, avalia professor

Acordo entre o governo brasileiro e o Vaticano, em tramitação no Congresso Nacional, estabelece o ensino católico e de outras doutrinas

 

O ensino religioso que aborda uma doutrina específica pode gerar discriminação dentro das salas de aula, segundo o sociólogo da Universidade Estadual Paulista (Unesp), José Vaidergorn. "O ensino religioso identificado com uma religião não é democrático, pode ser considerado discriminatório", disse em entrevista à Agência Brasil.

Segundo Vaidegorn, o ensino voltado para uma determinada religião pode constranger os alunos que não compartilham dessas ideias. O professor ressalta ainda a possibilidade de que, dependendo da maneira que forem ministradas, as aulas de religião podem incentivar a intolerância entre os estudantes.

As aulas de religião estão previstas na Constituição de 1988. No entanto, um acordo entre o governo brasileiro e o Vaticano, em tramitação no Congresso Nacional, estabelece o ensino católico e de outras doutrinas.

O Estatuto Jurídico da Igreja Católica é um acordo diplomático assinado entre a Santa Sé e o governo brasileiro no final do ano passado, regulamentando as atividades da Igreja Católica no país. O documento tem 20 artigos e trata de pontos como os bens da Igreja e o ensino religioso em escolas públicas.

A inserção do elemento religioso no processo educacional pode, segundo Varidergorn, gerar conflitos. "Em vez de a educação fazer o seu papel formador, o seu papel de suprir, dentro das suas condições, as necessidades de formação da população ela passa a ser também um campo de disputa política e doutrinária."

O presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Roberto Leão, contesta a justificativa apresentada na lei de que o ensino religioso é necessário para a formação do cidadão.

"Não podemos considerar que a questão ética, a questão moral, o valores sejam privilégios das religiões", ressaltou. A presença do elemento religioso não faz sentido na educação pública e voltada para todos os cidadãos brasileiros, segundo ele. "A escola é pública, e a questão da fé é uma coisa íntima de cada um de nós".

Ele indicou a impossibilidade de todos os tipos de crença estarem representados no sistema de ensino religioso. Segundo ele, religiões minoritárias, como os cultos de origem afro, não teriam estrutura para estarem presentes em todos os pontos do país.

Para CNBB, ensino religioso faz parte da educação integral

O presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Geraldo Lyrio Rocha, defende a implantação do ensino religioso nas escolas públicas do país. As aulas de religião estão previstas na Constituição de 1988. No entanto, um acordo entre o governo brasileiro e o Vaticano, em tramitação no Congresso Nacional, estabelece o ensino católico e de outras doutrinas.

Dom Geraldo descartou, em entrevista à Agência Brasil, a possibilidade de que a redação do projeto, explicitando a fé católica, privilegie a Igreja. "O que a Igreja Católica pede para si, ela também pede para as demais denominações", ressaltou.

Para ele, a religião é parte importante no processo educacional. "Uma educação integral envolve também o aspecto da dimensão religiosa ao lado das outras dimensões da vida humana."

O fato de o Estado Brasileiro ser laico, ou seja, separar a religião da estrutura estatal, não impede que sejam ministradas aulas religiosas nas escolas públicas. "Estado laico não significa Estado antirreligioso, nem Estado ateu", considerou o presidente da CNBB.

A presença da fé nas salas de aula estaria de acordo com a formação cultural da sociedade brasileira, na avaliação de dom Geraldo. "O Estado é laico, mas a sociedade não é laica. Os alunos não são arreligiosos", destacou.

Associação acredita que estatuto interfere na liberdade religiosa

O Estatuto Jurídico da Igreja Católica, em tramitação no Congresso Nacional, é um "retrocesso" no que se refere à separação entre Estado e religião, de acordo com o presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), Daniel Sottomaior.

"É o maior retrocesso em termos de laicidade do Estado nesses 120 anos de república, porque ele [o documento], de uma maneira só, estabelece uma série de privilégios para a Igreja Católica", disse Sottomaior em entrevista à Agência Brasil.

Uma afirmação semelhante foi feita pela Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), por meio de nota divulgada na última semana. "O acolhimento do Acordo pelo Congresso Nacional [em que tramita como a Mensagem n° 134/2009] implicará em grave retrocesso ao exercício das liberdades e à efetividade da pluralidade enquanto princípio fundamental."

Como a Constituição proíbe a associação do poder público com representantes religiosos, o acordo é também inconstitucional, na avaliação da professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Roseli Fischmann. "Seria o Estado brasileiro mantendo uma relação de aliança com uma instituição religiosa que escapa as exceções previstas na Constituição."

Um dos pontos mais criticados do acordo é o que trata da religião nas escolas públicas do país. Ele determina que o "ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental."

Segundo Roseli Fischmann, apesar de haver a previsão constitucional de ensino religioso nas escolas públicas de nível fundamental, a inserção do "católico" extrapola a lei. Ela explica que a Constituição estabelece o Estado laico, separado da religião, mas abre algumas exceções restritas, como o ensino religioso. "As exceções devem ser interpretadas de maneira restritiva. Não pode ter religião católica como está falando no acordo", destacou.

A colocação da palavra "católico" vai também contra a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, na visão de Daniel Sottomaior. O texto da lei na parte que regulamenta o ensino religioso diz que estão "vedadas quaisquer formas de proselitismo [apologia a determinado credo]". "Como o ensino vai ser católico e não proselitista? Ensino confessional [relacionado a uma religião] é proselitista por definição", explicou.

Sottomaior contesta ainda o uso de dinheiro e infraestrutura pública para disseminação de uma determinada crença. Ele reclama que o acordo determina o uso de "dinheiro do cidadão para financiar uma atividade que é da Igreja Católica: fornecer formação religiosa para os seus fiéis".

Para o presidente da Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Geraldo Lyrio Rocha, "o acordo em nada atinge a laicidade do Estado brasileiro e muito menos a Constituição da República do Brasil". Para ele, é importante diferenciar Estado laico, separado da religião, de país arreligioso ou ateu, que não possui ou permite religião.

Para procurador, símbolos em prédios públicos demonstram influência religiosa

O procurador do estado de São Paulo Jefferson Aparecido Dias afirma que a presença de símbolos religiosos em edifícios do Judiciário é uma demonstração de que a religião exerce influência no Poder Público, apesar de a constituição estabelecer um Estado laico, separado de qualquer igreja."Acho que o fato de existir um crucifixo em quase todas as salas de audiência é algo que demonstra que [a religião] ainda tem uma influência grande."

O promotor entrou com uma ação no final do mês passado em que pedia a retirada dos símbolos religiosos dos prédios públicos, onde há atendimento à população no estado de São Paulo. Para ele, a presença desses símbolos vai contra o princípio da laicidade do Estado.

"Na sala do servidor, na mesa dele, tudo bem ele ter um símbolo religioso, porque ele está manifestando a religião dele. Agora em ambiente que trabalham vários servidores e ele se destina a receber a população, não dá para dizer que é a manifestação da religiosidade de uma ou outra pessoa."

A presença de crucifixos em tribunais e outros edifícios públicos é uma imposição da maioria cristã sobre as minorias de outras religiões, na opinião da professora da Universidade de São Paulo (USP) e militante de direitos humanos Roseli Fischmann.

Segundo ela, essa situação causa constrangimento a pessoas que pertencem a essas minorias."Você vai para um julgamento em um tribunal e você é budista você não se sente bem, você está excluído daquele espaço, que é um espaço público."

Para o presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), Daniel Sottomaior, existem vários outros sinais que mostram a influência da religião no Estado. Ele destaca o exemplo da citação Deus Seja Louvado nas cédulas de dinheiro.

"Nenhuma instituição tem esse poder para escrever seus ideais no dinheiro de um país e por seus símbolos no Judiciário, no Executivo e no Legislativo", ressaltou. Sottomaior acredita que a presença da fé no Poder Público constrange cidadãos, que como ele, não tem religião.

Para o padre e doutor em direito, Salmo de Souza, os símbolos de fé afixados até mesmo em prédios públicos "estão em coerência com a tradição do povo na sua maioria". Por isso, na opinião de Souza, é necessário compreensão por parte das minorias.


(Daniel Mello, da Agência Brasil)


Data: 24/08/2009