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Niemeyer: é preciso ousar

Aos 101 anos, Niemeyer gosta tanto do contato com alunos que, pensando neles, criou revista

 

Niemeyer passa adiante o conselho que recebeu na juventude: é preciso ler, sobretudo os clássicos

RIO - Quando volta ao tempo em que dava seus primeiros passos na arquitetura, lá se vão 75 anos, Oscar Niemeyer não consegue se lembrar de nenhum conselho mais valioso que o de Rodrigo Melo Franco de Andrade, no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: “É preciso ler, sobretudo os clássicos.” Niemeyer, que ainda desenvolve projetos ambiciosos com a equipe do seu escritório na Avenida Atlântica, no Rio, passa o conselho adiante em encontros com alunos de Arquitetura. Mas acrescenta outro: ser ousado. “O importante é que o arquiteto tenha a coragem de propor solução audaciosa, pronto a atender, compreensivo, qualquer alteração que o cálculo da estrutura possa sugerir.”

 

Niemeyer adora falar com estudantes. Pensando neles, criou com a mulher, Vera Lúcia, a revista Nosso Caminho, sobre arquitetura e arte. “Não nos limitamos a divulgar meus projetos, também divulgamos os que se caracterizam pela adoção de formas mais retas e regulares”, explica, em entrevista dada por e-mail. “Se os projetos de Le Corbusier me agradam, agradam-me também as formas mais simples e retas que Mies van Der Rohe preferia.”

 

O que o senhor diria a um jovem que quer cursar Arquitetura?

 

Diria a ele que não deveria se limitar a estudar assuntos da profissão. Ao contrário, deveria ocupar-se de tudo que caracteriza este mundo estranho que o espera, e do qual a arquitetura faz parte. Pela leitura ele vai compreender que a vida com seus problemas é mais importante do que a arquitetura, e que terá de enfrentá-los. De outra forma, como muitas vezes acontece, ele poderá se transformar num excelente especialista na área escolhida, mas sem condições de participar da luta por um mundo melhor, a meu ver fundamental. Com relação à arquitetura, deve ter presente que a arquitetura e a técnica caminham juntas nesta procura da forma diferente que vai marcar seu trabalho de arquiteto.

 

Sua formação foi na Escola Nacional de Belas Artes. O que mais marcou aquele período?

 

Estudante, frequentei o escritório de Lucio Costa e Carlos Leão, e logo depois trabalhei a convite de Rodrigo Melo Franco de Andrade no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Tudo isso foi muito importante para mim. Lembro Rodrigo a recomendar: “É preciso ler, sobretudo os clássicos, começando por Diogo do Couto, que com tanta clareza escrevia sobre as incursões portuguesas na África.” Recordo como, de minha parte, procurei atendê-lo. Em certa ocasião, agradava-me ler os romances do (Georges) Simenon, que os colegas do escritório desprezavam, vendo-os como narrativas policiais sem maior conteúdo. E lembro, a sorrir, o dia em que os fulminei, contando que acabara de ler Cartas ao Castor onde, satisfeito, (Jean-Paul) Sartre confessava: “Hoje li três livros de Simenon.” O importante é ler; tudo se entrelaça neste mundo perverso em que vivemos. Como a leitura pode nos levar a entendê-lo melhor, e fazer-nos mais simples e generosos! Há mais de cinco anos temos aula de filosofia e cosmologia no escritório, com meu amigo Luiz Alberto Oliveira. Não raro delas saímos pequeninos diante da grandeza do universo, mais conscientes da insignificância do ser humano, certos de que muita coisa não tem a importância que lhe damos, de que o essencial é criar um clima de solidariedade, olhar o nosso semelhante sem procurar defeitos – convencidos de que, como dizia Lênin, 10% de qualidade já basta para nos entendermos.

 

Foi no escritório de Lucio Costa que o sr. realmente aprendeu o que é ser um arquiteto?

 

Foi um período de aprendizado num clima de correção e idealismo, que muitos jovens arquitetos não têm a oportunidade de viver.

 

O sr. costuma receber estudantes para falar sobre o seu trabalho e sua carreira. Eles têm algum interesse específico?

 

A preocupação deles é compreender minha maneira de trabalhar, como a técnica influi nos projetos e a minha atenção em alcançar a forma diferente – a arquitetura se integrando com as obras de arte, nas quais a invenção e a surpresa são também fundamentais. É o que sempre procuro afirmar nos textos da Nosso Caminho.

 

Qual a característica fundamental de um bom arquiteto?

 

Talvez uma intuição criadora especial. Intuição que deve estar combinada à consciência que cada arquiteto deve ter de sua arquitetura.

 

O senhor, que criou universidades no Brasil e em outros países, gosta de ensinar?

 

Muitas vezes tenho me encontrado com os estudantes. Neste momento estou realizando encontros com alunos de faculdades de todo o País. Recebo-os numa cúpula em construção, lá no Caminho Niemeyer, em Niterói. Já recebi estudantes e professores da cidade de São Paulo e de Brasília. Meu propósito é continuar a atender estudantes de toda parte. Nos encontros não me limito a discutir os problemas da profissão; detenho-me, sobretudo, nas questões que dizem respeito à própria vida, a este mundo injusto que um dia iremos modificar. Com que empenho lhes falo dos segredos da técnica, que nos permite essa arquitetura diferente, capaz de criar surpresa, o espanto que toda obra de arte deve provocar! Dou um exemplo: estamos construindo um conjunto de prédios importante em Avilés, na Espanha. Uma cúpula de 40 metros de extensão foi prevista. Na construção dessas cúpulas, que normalmente exigiria um ou dois meses, utilizamos um sistema novo de estrutura, que espantou todo o povo de Avilés, vendo-a construída em apenas algumas horas. Ao arquiteto cabe provocar as mágicas que a técnica do concreto armado possibilita.

 

O sr. acaba de lançar um livro que reúne diversos projetos elaborados nos últimos dez anos. Tem predileção por alguma obra em particular?

 

Todos esses projetos me são muito caros. Foram realizados com o maior interesse e entusiasmo. Vou me deter num exemplo. Dois meses atrás projetei um estádio, que poderá ser usado, independentemente dos problemas que o mau tempo pode causar. Nesse projeto quatro ou cinco vigas cobrirão o estádio, permitindo que por cima delas se estenda a cobertura de vidro projetada (por baixo, o sistema de iluminação indispensável). Com o trabalho já elaborado foi que consultei o calculista para examiná-lo. O importante é que o arquiteto tenha a coragem de propor solução tão audaciosa, pronto a atender, compreensivo, qualquer alteração que o cálculo da estrutura possa sugerir. Nos artigos da revista que estamos editando fica clara a minha ideia de que arquitetura é invenção, e de que, se nela a curva aparece com mais frequência, ela se impõe como a solução natural em razão dos grandes espaços livres que procuro criar. Não critico os colegas que seguem outra arquitetura. Respeito a dedicação com que, como eu, realizam os seus trabalhos. E é nesse jogo de concepções tão diferentes que a arquitetura, um dia ligada às classes mais desfavorecidas, como desejamos, assumirá afinal o nível social e técnico que ainda lhe falta.

 

O que o sr. considera mais importante na formação de um arquiteto: cursar uma boa faculdade ou fazer estágio no escritório de um bom arquiteto?

 

Tenho dúvidas sobre isso. A meu ver, o importante é que o jovem arquiteto não só saia da universidade qualificado para desenvolver as suas atividades, mas também esteja preparado (e, para isso, a leitura é fundamental) para compreender o drama do ser humano, participar da vida política e contribuir para a construção de um mundo mais solidário e fraternal.

 

(O Estado de SP)


Data: 30/07/2009