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Artigo - Felix

Wagner Braga Batista

 

Transcorria o ano de 1978. A UFPB, experimentava uma notável expansão física acompanhada pela contratação de professores. Reproduzia no seu interior um contencioso entre elites conservadoras que se beneficiavam do regime militar.

 

Em algumas regiões do nordeste, oligarquias tradicionais defrontavam. Aliados históricos aliados, assistiam à falência do modelo autoritário. Divergiam quanto aos métodos de subsistência política. A preservação dessas forças exigia novas estratégias de sobrevivência. Para alguns segmentos conservadores, modernização transformara-se em palavra de ordem.

 

Desse modo, emergiam do campo conservador forças postulando a modernização do regime autoritário e de suas instituições. Dirigentes universitários também incorporaram esse discurso.

 

No campo econômico, empresários influentes passaram a disputar mais arduamente o transito e os privilégios de oligarquias. O patrimonialismo de oligarquias, ligadas ao latifúndio via-se debilitado. Relações tradicionais, consuetudinárias e de fidalguia expunham suas vulnerabilidades. A ruptura dos elos do autoritarismo, o surgimento de novos agentes sociais, as pulsões manifestas em todos os cantos da sociedade, punham em xeque estruturas de poder obsoletas.

 

Na universidade novos compromissos e interesses esgarçavam o terreno onde oligarquias também exerciam seu domínio político

 

Sob esse prisma, o projeto de modernização conservadora desalojava segmentos mais retrógrados, promovendo a ascensão de forças sociais identificadas com uma parcela do empresariado supostamente mais dinâmica. Essas forças estariam aptas a manter as regras do jogo autoritário, utilizando um novo discurso modernizador, pseudo-liberal. De forma subjacente, institucionalizariam medidas excepcionais tendo como intuito refrear lutas pela democratização da sociedade e da universidade que eclodiam em todo o país.

 

A UFPB, instituição periférica, tornara-se um campo fértil para a implementação da modernização conservadora. Torna-se também o espaço no qual despontaram movimentos de resistência à implementação desse projeto. Movimentos com peculiaridades, que ora interagiam, ora se contrapunham a correntes “modernizadoras”. Nessas oscilações, ora questionavam, ora cediam a articulação com o empresariado hegemônico na região e a universidade.

 

O pano de fundo dessas oscilações era a transferência crescente de recursos públicos para a iniciativa privada. Promovida sob a forma de apropriação de insumos e de consultoria técnica, fornecida sob os auspícios do governo federal, convertia-se em fontes de rendas adicionais para funcionários públicos envolvidos nessas transações. Modernização era o novo apelido da privatização da universidade em doses cavalares ou homeopáticas.

 

Seus artífices, considerando a UFPB uma instituição de ensino superior periférica, presumiam que a modernização conservadora poderia avançar sob controle e a passos largos. Dispunham de massa crítica dotada de discurso ambíguo e de condições favoráveis.

 

Foram habilidosos, mas se equivocaram nos prognósticos.

 

A UFPB convertera-se num laboratório no qual se ensaiava uma nova versão do projeto MEC-USAID. Um modelo de universidade que buscaria autossustentação por meio do ensino pago, da comercialização de projetos e da gratificação pecuniária dos que aderissem à prestação de serviços. Uma universidade que atrofiava seu potencial crítico e se pretendia produtiva graças à integração com o mundo empresarial. Esse modelo, rechaçado graças ao avanço do movimento estudantil, no final dos anos 60, vicejava, então, com nova roupagem.

 

As fundações privadas e os núcleos interdepartamentais foram instrumentos desse projeto. Em nome da agilidade e da autonomia, núcleos divorciavam-se dos departamentos para viabilizar projetos, muitos dos quais que não passavam pelo crivo das unidades acadêmicas. Professores vinculados a esses núcleos faziam o papel de interlocutores e gerentes de interesses externos, criando canais que permitiam que empresas hegemônicas pudessem se beneficiar dos recursos públicos da instituição.

 

A integração universidade-empresa escondia o real sentido da expropriação de potencialidades e de insumos da instituição pública. Essa prática legitimava-se em nome da relação da universidade com a sociedade. Confundia propositalmente o todo com uma de suas partes. Como se necessidades sociais, complexas e diversificadas, pudessem se traduzir e se limitar a demandas de empresas. Essa lógica restritiva apegava-se ao pressuposto de que a universidade dissociada do autodenominado setor produtivo estaria fadada à simples especulação teórica. Ou como se dizia, depreciativamente, ao estudo de asas de borboletas. Frente a esse imediatismo, que reduzia horizontes da universidade, o relevante eram interesses localizados. A abrangência e a universalidade do conhecimento manter-se-iam constrangidas pela visão e pelo direcionamento comercial da pesquisa. Relevante ou interessante, tornava-se tudo que poderia ser vendido.

 

O discurso da tecnologia alternativa, endógena ou regional serviu como estofo para patrocinar interesses afluentes do empresariado local.

 

O  Departamento de Engenharia Mecânica, da UFPB, em Campina Grande, foi um dos espaços privilegiados de discussões e enfrentamentos. Como alguns outros departamentos, também formulou uma proposta de criação de um núcleo, que não chegou a se materializar: NUPRO- Núcleo de Produção. Era composto pela junção de três áreas que  compunham originalmente o departamento: mecânica, produção e desenho industrial.

 

Em todos os fóruns da UFPB participamos ativamente desses embates. No Departamento de Engenharia Mecânica, Felix (Felix Brasil) foi defensor de proposições das quais discordávamos sistematicamente.

Esse debate penetrou outros nichos da UFPB, ampliou-se e ganhou vulto.

 

No final de 78, para sacramentar teses e praticas disseminadas na UFPB, foi realizado o Seminário de Tecnologia Endógena, um evento de porte nacional, financiado pelo CNPQ. Á época o presidente da entidade comportava-se como um preposto do regime militar. Sem a menor desfaçatez pronunciava-se abertamente contra retorno de professores e pesquisadores cassados pela ditadura.

 

Pois bem, ao final do evento as teses aprovadas não corroboraram esse projeto de modernização conservadora, hoje hegemônico na UFCG. Como fecho de ouro, uma moção, aprovada por aplausos, defendia a reintegração de todos os atingidos pelo regime de exceção a suas instituições de origem.

Mais uma vez, os pendores autoritários se manifestariam. O presidente do CNPQ utilizou-se de suas prerrogativas para fazer ameaças, incompreensíveis na atualidade. Exigia que algumas menções fossem retiradas dos anais ou romperia o acordo prévio, não pagaria as contas do evento.

 

Professores que participaram do Comitê Organizador se contrapuseram a essa ameaça descabida, João Menino, João Augusto Lima Neto, hoje professor da UFBa, e Telmo Araújo, in memorian. Essa postura altiva acabou prevalecendo e se manteve a integridade das resoluções do Seminário.

 

No entanto, no Departamento de Engenharia Mecânica, abriu-se campo à retaliação. Após consulta a alguns professores, que silenciaram, o chefe de departamento comunicou-nos  que o nosso contrato de professor colaborador não seria renovado e que seríamos demitidos porque prestávamos “desserviço à universidade”.

 

Dois colegas, do Departamento de Mecânica não titubearam. Prontamente se insurgiram contra tal atitude vingativa: João Menino, com quem tínhamos afinidades ideológicas, e Felix Brasil, meu contumaz adversário nos embates mencionados.

 

A postura do Felix me surpreendeu muito. Até porque habitualmente era uma pessoa comedida e contemporizadora. No entanto, assim que consultado, sigilosamente, não só reagiu, manifestou sua indignação, como denunciou publicamente essa conduta deplorável.

 

Felix fora capaz de assumir uma postura solidária, que muitos outros colegas mais próximos, hesitaram adotar.

 

Continuamos divergindo ao longo de quase vinte anos de convivência acadêmica. Seguramente, tínhamos uma relação de confiança recíproca, contudo divergíamos na forma de tratar e de superar problemas internos do DEM. Muitas vezes, estivemos em campos opostos.

 

Apesar disto, tornamo-nos amigos. Desses que eventualmente bebem juntos, fazem pilhérias, alguma confidência e não se incomodam com as diferenças do outro.

 

Quando o vimos, pela última vez, já não nos recordamos se são passados um ou dois anos. Falamos de coisas triviais e de fatalidades que nos acometeram. Demos um abraço. Um abraço marcado por uma inesquecível sensação de solidariedade, que não se desfizera no tempo.

 

Sem sabermos, era um abraço de despedida.

 

Com toda certeza, um abraço de adversários, mas que seria, para sempre, um abraço amigo.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 28/07/2009