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Após sacrifícios, intercambistas desistem de voltar

Pessoas transformam o sonho da viagem em mudança de vida

 

O plano inicial do redator Luis Alberto dos Santos Filho, 35 anos, era ficar um ano em Londres, na Inglaterra. Passados cinco anos, ele está de volta a São Paulo para uma visita aos pais que moram aqui. Mas é apenas uma visita mesmo, porque ele, sua esposa - que é sueca - e sua filha recém-nascida voltarão em alguns dias para a Inglaterra. Os planos incluem ainda a mudança permanente do casal para Lund, na Suécia. Santos Filho tem história parecida com a de muitos intercambistas que começam sua viagem com algumas idéias, o desejo de aprender uma língua nova e conhecer culturas diferentes e acabam por reformular tudo, trocam um ano de estudos por uma vida inteiramente nova.

 

Durante a entrevista, Santos Filho precisa fazer breves interrupções para dar atenção à família que se encanta com a pequena Lovisa, de seis meses de idade. Sentimento natural para um bebê e para quem visita a família do pai pela primeira vez, mas a garotinha não parece muito receptiva aos mimos, prefere dormir, motivo pelo qual Santos Filhos precisa dividir as atenções entre as perguntas e o zelo pela pequena. Ele conta que a mudança começou em 2004, quando a empresa em que trabalhava faliu. Com o projeto na cabeça, o dinheiro da demissão na mão e um passaporte italiano no bolso, benefício de sua ascendência, Santos Filho refletiu que era chegado o momento de realizar o sonho. "Ou eu ia naquela hora ou não ia nunca mais, então decidi ir", resume ele.

 

No início, Santos Filho não foi muito diferente da maioria dos intercambistas. Mas ao invés de buscar ajuda especializada, preferiu garimpar as coisas sozinho. Pesquisou lugares para ficar e deixou uma breve estadia num albergue paga. Como tem o passaporte italiano, acabou poupado de uma série de etapas burocráticas e difíceis ligadas à obtenção do visto britânico. Isso também livrou o redator da necessidade de ter de pagar por um curso, providencia quase fundamental para quem pretende conseguir a autorização de entrada no país europeu. Ainda sim, ele admite que um dos principais objetivos era se aprimorar no idioma.

 

Ao chegar na cidade, usou os contatos que tinha com um amigo brasileiro e por meios dele construir diversas pontes que viabilizaram muitas coisas úteis para sua vida no estrangeiro, entre elas, um lugar melhor para morar e um emprego. "Fiquei duas semanas no albergue. Aí conheci uma brasileira que morava com um casal de ingleses. Ela estava com tudo pronto para voltar e me indicou para ficar no lugar dela. Nessa, arranjei um emprego, trabalhava para esse casal de ingleses. Vendia comida indiana em festivais de música", conta Santos Filho.

 

O rapaz conta que essa atividade, além de resolver dois problemas, deu a ele a possibilidade de entrar em diversos festivais sem ter de pagar o ingresso e nem enfrentar as enormes filas de espera para conseguir uma entrada. Muitos desses festivais tinham bandas que Santos Filho realmente curtia, o que tornava o trabalho menos sacrificante. Durante esse período, ele teve parte do tempo livre e aproveitou para angariar novas oportunidades de trabalho e moradia.

 

Depois de um mês ele arranjou um emprego num pub e conseguiu, com o novo salário, alugar seu próprio quarto. "Fiquei um mês com esse casal, aí achei que já era suficiente. No começo é importante conhecer os brasileiros, porque eles ajudam bastante. Havia uma brasileiro que trabalhava nesse pub e me indicou", afirma o redator, sobre sua segunda indicação vinda de conterrâneos. Com alguma base consolidada, Santos Filho explicou que pôde investir na vida social, passou a sair mais e conhecer mais pessoas e interagir mais com os ingleses. "Esse contato te dá a chance de ver como as coisas funcionam", garante ele.

 

Quando se aproximava do prazo que Santos Filho havia estabelecido para voltar, ele avaliou sua situação. "Londres é um lugar muito legal, tem muita coisa legal, os museus são gratuitos, por exemplo. E essa é uma experiência que abre tantos horizontes, de tantas coisas. Viajar pela Europa é tão fácil que chega a ser ridículo. Paguei um centavo numa promoção por uma passagem para Berlim (Alemanha). Ganhava em moeda forte. Então decidi: 'vou ficar aqui'", lembra ele a respeito da avaliação que fez antes de tomar a decisão que mudaria a sua vida completamente. Com o tempo vieram experiências, namoradas, a esposa e a filha.

 

Força do mercado ruim

 

Quem também acabou por substituir uma viagem de um ano pela imigração foi a relações públicas Luana Batista Lima, 23 anos. Ela conta que decidiu ir para França depois de perceber que não conseguiria atuar em sua área profissional devido à retração do mercado de trabalho. Ela se formou e não conseguia emprego. Já que era para trabalhar fora do que queria, resolveu encarar um au pair, trabalho em que moças viajam para fazer intercâmbio e trabalhar como babá. No caso de Luana, encarou logo os três filhos de um casal que morava em Perpignan, no Sul da França.

 

Ela diz que não foi difícil cuidar das crianças, que na época tinham 10, 8 e 6 anos. A mãe basicamente precisava dos "serviços" de motorista da recém-formada para levá-los nas atividades pós escola, como aulas de música e escolhinhas de futebol. Isso permitiu a ela conciliar sem grandes dificuldades o trabalho com o curso de graduação em língua francesa. "Minha idéia era ficar um ano, estudar a língua e voltar, mas me apaixonei pelo idioma, pela cultura, pelas pessoas e resolvi ficar mais um ano", explica Luana. Ela conta que a renovação não foi um problema muito grande, já que contou com o apoio da família francesa que a hospedara. "A relação com essa família foi tão boa que resolvemos ficar mais um ano juntos. O primeiro visto foi mais difícil porque eu não conhecia nada", admite ela.

 

A relações públicas explica que, apesar de ter somente 21 anos quando resolveu permanecer na França, a notícia não foi um trauma para sua família porque ela já havia abandonado o teto dos pais para morar no interior do estado de São Paulo durante o período em que estudou na graduação. "Meus pais já estavam acostumados com a distância", afirma ela. Luana conta que a fase mais difícil de todo esse processo de imigração foi o começo. Ela diz ter sofrido um choque por causa das dificuldades em se relacionar com as pessoas devido à barreira criada com o idioma diferente. "Foi uma barreira gigantesca. A partir do segundo ano isso melhorou porque eu aprendi bastante coisa do idioma e pude me concentrar em trocar experiências com franceses e, até por isso, o domínio do idioma passou a evoluir rapidamente para mim".

 

Depois de dois anos estabelecida na França, Luana resolveu virar tudo de cabeça para baixo. Largou o que tinha e foi para a Suécia. "Quando estava na França todo mundo falava muito da Suécia. Eles têm a Suécia como um modelo de desenvolvimento, um país ideal. Como tinha terminado o curso de graduação em língua francesa resolvi ir para lá para saber afinal como era esse país tão avançado". Ela então usou seu conhecimento na língua francesa para subsidiar sua estadia lá, passou a dar aulas de francês e usou o dinheiro para alugar um quarto na casa de uma família sueca. Dessa vez ela não precisaria ajudar com as crianças da casa, mas usou o contato com essa família para aprender a cultura e a língua locais.

 

Luana afirma não ter se adaptado ao novo lugar e passou a ter problemas em permanecer na Suécia. "É complicado ficar aqui, o inverno é muito longo e escuro. Nesse período, o sol nasce às 9h e se põe lá pelas 15h. Essa coisa do frio e do escuro me deixa muito triste, mas o que realmente me incomoda mais é o comportamento dos suecos. Eles são muito calados, distantes. É uma sociedade do silêncio. Me parece que por aqui, uma forma de respeitar os outros é ficar em silêncio. Eles são difíceis de se entregar numa relação de amizade como as que eu tinha no Brasil", desabafa ela. "Não odeio esse lugar, mas não posso mais ficar aqui. É um estereotipo a imagem que se tem daqui, porque aqui eles também têm problemas. Foi um choque ainda maior do que aquele na vivido na França. Não deu certo e eu vou voltar em breve para a França", sucumbe ela, que diz ter planos para um mestrado na França.

 

Ilusões perdidas

 

História semelhante a de Santos Filho tem o advogado Flávio Côrtes, 29 anos. Ele também queria trocar São Paulo por Londres, mas não da forma como acabou por trocar. E ao contrário de Santos Filho, não tinha a canja que um passaporte italiano dá, teve de encarar todos os processos burocráticos para entrar e permanecer no país. "Sempre quis morar fora. Até por uma certa 'glamourização' da coisa, um certo desejo ingênuo de morar fora", declara Côrtes.

 

O advogado enfrentou tempos turbulentos nos idos de 2002, quando o mundo vivia o medo e as neuroses geradas com os ataques às torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, em 11 de setembro de 2001. Ele lembra que tentou se aventurar nos Estados Unidos, depois dos três anos em que permaneceu no setor jurídico de uma rede de televisão a cabo especializada em esportes. "Fui para lá para trabalhar, mas principalmente naquela época, ninguém queria empregar ilegal. Algum tempo depois, soube que um amigo estava indo para a Inglaterra e resolvi ir junto", conta Côrtes.

 

O caminho das pedras para Côrtes foi o de se matricular num curso para obter o visto de estudante e com ele autorização para trabalhar em meio período. "O curso de inglês em que me matriculei era uma fábrica de vistos. Era muito ruim. O meu professor de inglês era um polonês", recorda ele. Durante dois meses Côrtes lembra que "trabalhou em tudo". Depois desse tempo, a sorte começou a mudar. Por meio de uma agência de empregos, ele conseguiu um emprego na Walt Disney Company. Era temporário, mas abriu as portas para uma relação com aquela empresa, o que fez toda a diferença na jornada do advogado na Inglaterra.

 

Quando terminou o contrato, foi chamado novamente pela empresa para cobrir a vaga de uma funcionária que se licenciara em função do parto. Essa relação de trabalho foi o que viabilizou a obtenção do visto de trabalho e com ele as novas possibilidades que o documento proporcionava. Para isso, Côrtes teve de fazer uma operação ligeiramente bizarra, mas necessária segundo a legislação britânica, voltou ao Brasil para então entrar novamente na Inglaterra sob o regime do novo visto. Quem acha que a partir desse momento o advogado ficou tranqüilo quanto à permanência no estrangeiro, engana-se.

 

Ele destaca que esse foi um momento de incerteza absoluta diante da proximidade do fim do contrato temporário de trabalho. "Fiquei com o coração na mão porque se eles não renovassem o contrato eu teria um mês para deixar o país", diz. A partir desse momento, Côrtes passou a se dedicar à obtenção de um visto diferente, um documento que lhe daria mais conforto e seria o primeiro passo rumo à imigração. O novo visto permitiria a ele trabalhar por dois anos com direito de renovação por outros três. A batalha dele passou a ser em torno disso.

 

"Não fui para lá pensando em ficar, queria estudar, mas as coisas foram acontecendo. O trabalho na Disney era uma coisa que eu nem esperava", admite ele. A luta pelo novo documento terminou em 2006, quando finalmente ele não teve mais de depender das renovações sucessivas, porém, incertas que a empresas impunha. "A diferença é que a partir de então pude trabalhar por minha conta", resume ele. Em 2008, Côrtes conseguiu a renovação para o segundo período do visto, que só vencerá em 2011.

 

O advogado tem um visão crítica de sua situação e de tudo que viveu e vive em Londres. Ele fala numa certa ilusão das pessoas em morar fora do Brasil, como se isso, por si só, significasse uma melhora de vida automática. Essa é uma ilusão que ele diz ter perdido. "É bom morar fora, você valoriza sua família, seus amigos, valoriza seu país. São Paulo é uma cidade muito boa. Acho que há muito glamour das pessoas em querer morar fora. Elas acham que vão chegar aqui e vão ganhar muito dinheiro e não é assim. Vai ter de trabalhar mesmo e em tudo, mesmo se tiver um diploma universitário como eu fiz. Você vai sempre ser um estrangeiro aqui e não adianta, por melhor que você fale o inglês, ela será sempre sua segunda língua", declara ele.

 

"Até hoje não posso falar que tenho um grande amigo em Londres, as amizades são superficiais. Bate tristeza, principalmente em datas como Natal e aniversário. No inverno aqui é verão no Brasil e é estranho quando você liga para sua família e todo mundo está curtindo o calor brasileiro e você está no escuro, no frio. Cheguei a ficar deprimido. E uma coisa que é preciso fazer sempre é avaliar para ver até que ponto isso tudo vale a pena", admite ele.

 

Submersão total

 

Santos Filho não despreza a vantagem que ter o passaporte italiano lhe proporcionou. Ele conta que dos muitos brasileiros que conheceu em Londres, grande parcela permanece no país depois que o visto expira. Essas pessoas acabam por viver no submundo totalmente sem direitos. Essa foi uma avaliação que Côrtes divide com o colega imigrante. "Tem muita gente que fica aqui sem plano algum, só trabalha para pagar as contas e não agrega nada. Aí acaba o prazo do visto e eles tentam permanecer ilegalmente ou arranjar um casamento", conta ele.

 

O advogado explica que esse tipo de coisa gera muitos problemas para as pessoas que, sem direito nenhum e vivendo à margem da lei, passam a temer a polícia e as autoridades. Pessoas que são assaltadas, agredidas e que não chamam a polícia, não dão queixa porque sabem que isso pode significar prisão e extradição, num processo que inviabiliza qualquer possibilidade de retorno ao país.

 

E muitas vezes, a abordagem da polícia acontece repentinamente, quando menos se espera. Que o diga Santos Filho. Ele se diverte ao contar uma ocasião em que visitava o Palácio de Buckingham, residência oficial da rainha da Inglaterra. Na entrada do palácio, sua mãe telefonou e os dois começaram a conversar. Enquanto papeava, ficou caminhando com uma sacola na mão. Poucas passagens pela porta depois, foi parado e revistado. Os policiais o avisaram que o motivo da abordagem foi suspeita de terrorismo.

 

Santos Filho conta que durante um período de sua permanência em Londres teve contato com uma gangue de brasileiros especializada em falsificar documentação necessária para a permanência no país. Para aqueles que querem se aventurar nessa empreitada, Côrtes dá algumas dicas: "É preciso motivação, estar preparado para fazer qualquer coisa. A dica é ter coragem, esqueça a ilusão, o glamour. É difícil estar sozinho, não ter família por perto. E além disso, precisa ter um plano, saber o que se quer".

 

(Universia)


Data: 08/05/2009