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Em muitas escolas, aulas são só ficção

Ano letivo ainda não começou em colégios de norte a sul do país devido a falta de professores e péssima infraestrutura

 

Março deveria ser o segundo mês de aulas nas escolas públicas do país, com alunos, professores, inspetores e auxiliares em plena atividade. Mas, no lugar de turmas estudando para as primeiras provas, o jornal "O Globo" encontrou, em oito estados brasileiros, salas de aula vazias por falta de professores ou problemas de infraestrutura nas escolas.

 

Em estados como Rio, São Paulo, Bahia, Pernambuco, Piauí, Ceará, Alagoas e Amazonas, há alunos sem aula por causa de goteiras, inundações, ratos, cupim, carteiras quebradas e paredes destruídas.

 

O distrito de Jussaral, a 60 quilômetros do município de Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, tem apenas uma escola municipal para a população de seis mil pessoas. Mas não há alunos em sala de aula.

 

Revoltados com as péssimas condições de ensino, os pais decidiram boicotar a escola. Entre a aprendizagem e a vida dos seus filhos, os responsáveis preferiram ficar com a segunda opção.

 

Exigem educação de qualidade e segurança, mas o que encontraram na escola Marquês de Recife, no início deste ano, não é compatível nem com um nem com outro: as salas estão deterioradas, telhados ruíram, e os cupins avançam pela estrutura. Há infiltrações nos corredores e salas. Metade do muro que cerca a escola desabou, mas a prefeitura ainda não vê risco. Na parte interna, rachaduras são visíveis. Sem espaço, os livros se acumulam pelo chão e até mesmo em sanitários.

 

Dados do Censo da Educação Básica 2007 confirmam que a precariedade está espalhada pelo Brasil. Das 166.240 escolas públicas de educação básica, 71% não têm biblioteca; 77% estão sem quadra de esportes; 13% não contam com água filtrada para os alunos; e 8% sequer têm esgoto.

 

Na última quarta-feira, o pastor José Sabino Segundo, pais e alunos procuraram o Conselho Tutelar e o Ministério Público para denunciar a situação caótica em Cabo de Santo Agostinho.

 

O presidente do Conselho Escolar, Rinaldo Monte da Silva, denuncia a exclusão social e o descaso público impostos à comunidade.

 

Na quinta-feira, alunos e mães voltaram à escola Marquês de Recife para protestar. Com cartazes feitos de cartolina, reclamavam: "Prefeito, isso é uma vergonha".

 

- O pai tem direito de fazer greve. Mas minha postura como educadora é diferente. Fico preocupada quando vejo que tem menino que não sabe ler ainda - diz a professora Maria Auxiliadora da Silva.

 

Paredes que dão choque

 

Em 2008, já em crise, a Marquês de Recife, tinha 783 alunos, segundo o diretor Júlio Farias da Silva Braga. Em 2009, apenas 678 decidiram se matricular.

 

Das 16 salas, só oito foram liberadas para funcionar este ano, e os pais temem que os telhados desabem. Eles mostraram linhas de madeira corroídas por cupins. A Secretaria de Educação informou que foram reforçadas para evitar desabamento do telhado. Mas verificase um risco ainda maior: as madeiras podres ganharam sobrepeso com suportes.

 

- A Igreja Renascer caiu em São Paulo sem ninguém esperar, depois de reforma. Aqui não houve conserto, e ninguém quer ver seu filho numa tragédia - reclama Taciana Lima, de 30 anos, mãe das gêmeas Tainara e Tamara, de 7.

 

Em 2008, a escola foi inundada, o muro desabou, e a parede dava choques. Abastecimento de água apenas de dois em dois dias. Dez computadores estão há um ano armazenados em caixas e não podem funcionar. Livros estão amontoados, expostos à umidade do chão, porque a biblioteca foi interditada.

 

No Rio, a infraestrutura precária se repete, com o agravante da falta de professores. O Ciep municipalizado 045, em Porto do Rosa, na cidade de São Gonçalo, tem 500 alunos da 1aà 4asérie do ensino fundamental. Da proposta que surgiu no governo Brizola para garantir ensino público integral de qualidade, só restou o esqueleto. Suja, a piscina tem apenas lodo. Não há porteiro para controlar a entrada, e as cercas estão quebradas. Como falta água frequentemente, alunos reclamam de sede durante as aulas e dos banheiros insalubres.

 

O transporte para os estudantes ainda é um sonho distante dos moradores.

 

- Inscrevi meu filho de 7 anos para o ônibus escolar que a prefeitura ofereceu, mas não me deram a carteirinha. Para deixá-lo com segurança no Ciep, tenho que andar uma hora para ir e voltar. Ele já perdeu aulas por causa da falta de água. O governo tem que ter mais responsabilidade - reclama a doméstica desempregada Maria Salvadora Carreiro, que sobrevive catando latas e perde quase metade de seu dia de trabalho levando, a pé, o filho à escola.

 

Números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) confirmam que a dificuldade da mãe é comum. Em 2006, 1,8 milhão (9,2%) de alunos declararam faltar a aulas por ausência de transporte, falta de professor ou greve.

 

A Secretaria de Educação de São Gonçalo informou que recebeu o Ciep do estado em péssimas condições, e que começou a recuperar as instalações. Sobre a piscina, o município diz que está desativada e faz parte do programa de controle de zoonoses.

 

Larvas foram espalhadas para impedir o surgimento de mosquitos. Segundo a secretaria, há rotas de transporte escolar em funcionamento.

 

Caderno novo, mas em branco

 

Não muito longe do Ciep, a escola estadual Trasilbo Filgueiras, no bairro de Jardim Catarina, também em São Gonçalo, ainda não começou o ano letivo para os alunos do ensino fundamental. Além de goteiras que aparecem em dias de chuva, o problema maior é a falta de professores.

 

Como qualquer menina de 7 anos, Taynah se arrumou toda, no dia 9 de fevereiro, para começar a 2ª série. Ao chegar à Trasilbo Filgueiras, recebeu a notícia de que não teria aulas porque não havia professor. Desde então, está em casa.

 

Mãe da menina, a dona de casa Márcia Cristina de Oliveira tinha juntado economias para, com a ajuda do pai, que trabalha numa papelaria, comprar o material: uma mochila e quatro cadernos, cuidadosamente encapados para durar o máximo. Todos estão em branco. A mãe tenta, num bloco de rascunho, criar exercícios para a filha não perder o ritmo, já que não é a primeira vez que isso ocorre.

 

- Em 2007, minha filha só começou o ano letivo em junho também por causa da falta de professores. Reclamei várias vezes, mas eles não têm previsão. Todos os dias ela me pergunta se terá aulas. À noite, quer que eu ajuste o alarme para acordar cedo, mas não temos informação - diz, indignada, Márcia.

 

A Secretaria estadual de Educação admitiu que faltam três professores no ensino fundamental da escola e informou que dois novos profissionais já estarão lá amanhã. Um terceiro "deve ser alocado na próxima semana", afirmou a assessoria da secretaria. A Estudante Taynah e a mãe, Maria Cristina, tentam criar exercícios em casa: cadernos novos em branco por causa da falta de professores na escola.

 

Férias forçadas e rodízio para assistir a aulas

 

Na Bahia, as aulas recomeçaram no dia 2 de março, mas ainda é tempo de férias forçadas para boa parte dos estudantes. Os maiores problemas são falta de salas de aula - muitos prédios foram reformados, mas a obra não foi concluída - ou de carteiras. Na Escola Estadual Maria José, em Sobradinho, Norte do estado, quase mil alunos continuam sem aula: o prédio, com 16 salas, está sem telhado e as paredes, sem pintura.

 

Em Salvador, há problemas até nas que são consideradas as melhores escolas da rede pública. No Colégio Odorico Tavares, parte dos três mil alunos assiste às aulas em esquema de rodízio, dependendo da quantidade das salas disponíveis. Quatro delas estão sem condições de uso.

 

Em Eunápolis, 3 mil alunos estão sem aulas por falta de carteiras escolares na rede municipal. As aulas começaram em 16 de fevereiro, e a licitação para compra das carteiras foi feita no início do mesmo mês. Enquanto as carteiras não chegam, as escolas improvisam ou mandam os alunos para casa.

 

Na Escola Rotary Clube III, 525 alunos ainda não tiveram aula.

 

- Conversamos com a secretaria e eles estão dizendo que vão entregar (as carteiras). O que podemos fazer é esperar - disse a diretora Eliane Freitas.

 

Na Escola Municipal Professora Nilza Barbosa de Oliveira, 40 alunos estão dispensados das aulas por falta de carteiras. Lá, os professores chegam mais cedo e disputam as poucas existentes nas salas.

 

- Chego às 6h e saio pegando carteiras em outras salas. Tem dia que até tranco a sala para não pegarem as carteiras - diz uma professora.

 

A diretora Maria da Conceição lamenta: - É uma pena ver crianças indo todo dia e voltando. Estamos fazendo o que dá. Não vamos colocar crianças no chão.

 

Em Teresina, choques e material destruído pela chuva

 

Em Teresina, 450 alunos da Escola Municipal Cacimba Velha, na zona rural, ainda não tiveram aulas porque o colégio está em reforma desde junho do ano passado. O ano letivo começou no dia 3 de fevereiro. Sem aulas, crianças e adolescentes Milhares de alunos 'estudam' em escolas sem telhado nem carteiras passam o turno escolar em frente ao colégio, numa estrada movimentada, brincando ou, no caso dos mais velhos, fumando.

 

Devido à reforma, as aulas do segundo semestre de 2008 foram transferidas para salas improvisadas num galpão da Fundação F.C. Lopes, onde funcionava uma antiga fábrica de móveis, na comunidade rural Taboquinha. Não deu certo. Como o galpão é aberto, sem paredes, a água da chuva alagava as salas.

 

- Quando chovia, a água entrava na escola e molhava a gente, livros e cadernos - contou Ismael Dourado de Sousa, de 18 anos, do 8º ano.

 

- Muitos alunos levaram choques por causa das instalações elétricas velhas - contou a estudante Adriela de Sousa Costa, de 17 anos, do 1º ano do ensino médio.

 

Mesmo assim, as aulas prosseguiram no galpão até dezembro. Com a reforma atrasada, as carteiras e cadeiras, a maioria quebradas, continuam no galpão amontoadas e molhadas. O quadro é de desolação. Livros, dicionários e material didático estão no chão molhado pela água das chuvas que entram com o vento ou por goteiras.

 

Crianças passam as tardes diante do portão fechado

 

Ismael e o colega Rafael Cabral, de 14 anos, do 6º ano do ensino fundamental, passam as tardes andando de bicicletas na frente da escola.

 

- A gente se reúne com saudade da escola e para que os nossos pais não nos empurrem para a roça. Querem que a gente trabalhe, fazendo carvão - contou Rafael.

 

Os estudantes Daniel dos Santos, de 16 anos, do 5º ano do ensino fundamental, e Wanderson César Costa da Silva, de 18, do 7º ano, fumam na praça.

 

- Essa reforma não acaba nunca. Disseram que estava demorando porque iam fazer uma quadra, mas entramos lá e é só mato - contou Daniel.

 

O secretário municipal de Educação de Teresina, Washington Bonfim, afirmou que decidiu esperar a conclusão da reforma e reiniciar as aulas com atraso, já de um mês e meio. O secretário de Educação do Piauí, Antônio José Medeiros, afirmou que 20% das 8.018 escolas estaduais sofrem com a falta de aulas de algumas disciplinas, por falta de professor. A rede pública estadual de ensino do Piauí tem 362 mil alunos.

 

Em SP, sala improvisada em corredor

 

Augusto (nome fictício) tomou banho em casa e, na última quinta-feira, chegava às 13h para estudar na escola estadual Carlos Henrique Liberalli, Zona Leste de São Paulo, com os cabelos levemente molhados.

 

Quatro horas e meia depois, ele encontrava a mãe na porta do colégio, ainda com os cabelos úmidos. Ao Globo, explicou que é difícil deixar a sala de aula completamente seco por causa do "calorzão lá dentro". No caso dele, a situação piora porque Augusto não estuda numa sala convencional, mas num corredor improvisado há mais de um ano como área de aprendizagem, com carteiras e lousa, só que fechado por portas de aço onde o ar circula só por uma pequena fresta, perto do telhado.

 

Em ambiente aparentemente insalubre, o garoto e outros 20 alunos têm aulas de reforço, já que fariam parte do Programa de Recuperação de Ciclo (PIC), especialmente criado pela Secretaria estadual de Educação para os alunos com dificuldade de aprendizado. Apenas turmas do PIC estudam no corredor. Os demais alunos têm aula em salas normais.

 

A sala onde Augusto estuda é, segundo o projeto de construção do prédio, uma área de passagem. Segundo funcionários da escola e mães de alunos, o local servia, até o início do ano passado, como ligação entre o pátio do colégio e salas de aula na parte inferior, próximas ao estacionamento.

 

Alegando não ter local para tocar o programa, a escola teve de improvisar, e o corredor foi escolhido para abrigar aquela turma. Segundo funcionários da escola, o local foi apresentado a integrantes da Secretaria estadual de Educação para aprovação. A secretaria, por sua vez, informou sexta-feira que a decisão de colocar alunos no corredor foi "absurda e um grande erro da diretora" daquela unidade.

 

Ainda segundo a assessoria de imprensa do órgão, um técnico foi sexta-feira ao local e confirmou a denúncia.

 

A diretora recolocaria a turma do PIC numa sala de aula, até então usada para guardar material escolar, a partir de amanhã.

 

No último ano, no entanto, o local só era transitável à noite, o que impôs a alunos e funcionários uma atividade diária: tirar e colocar carteiras e cadeiras do local sempre que as aulas começam, nos períodos da tarde e da manhã, quando o corredor é usado. O material fica "guardado" numa parte do corredor que continua servindo a seu propósito. A escola fica no Jardim São Francisco, região de São Mateus, periferia da cidade, na vizinhança de moradias populares.

 

Em Alagoas, 15 copos para mil alunos

 

Em Maceió, o Ministério Público entrou com ação civil contra o governo do estado por causa da falta de professores e carteiras.

 

Um exemplo é a Escola Estadual Maria Ivone, onde faltam professores de física, português e geografia. O prédio, alugado e cheio de rachaduras, pertence ao deputado federal Givaldo Carimbão (PSB/AL). Por causa do mau estado das instalações elétricas, há risco de incêndios.

 

As portas dos banheiros estão quebradas e os bebedouros e as carteiras, enferrujados; na hora da merenda, o "milagre" é dividir 15 copos para os atuais mil alunos. Uma das salas foi interditada porque o teto ameaça desabar, os corredores são pequenos, não há pátio, as salas são quentes, e algumas só têm um ventilador para 60 alunos.

 

- Se houver incêndio, só existe saída no térreo. Quem está no segundo andar não sobrevive - disse a diretora, Maria Celi Barbosa da Silva.

 

A coordenadora de Gestão de Pessoas da Secretaria de Estado, Nadir Oliveira, disse que espera o censo dos servidores para descobrir a realidade da rede estadual. Cerca de 30% dos dez mil professores estão licenciados por doença ou para cuidar de parentes doentes.

 

Em Manaus, 18 mil alunos - 7% da rede municipal - estudam no horário do almoço, por falta de escolas. O "turno da fome", das 10h30m às 13h e das 11h às 14h, é criticado por especialistas.

 

Dos 18.111 alunos do horário, 1.204 têm de 5 e 6 anos.

 

Durante as aulas, Carlos Viana, de 14 anos, tem sono e fome, que tenta driblar com bolachas.

 

- A professora fala e não consigo prestar atenção. De manhã era mais fácil.

 

A secretária de Educação de Manaus, Therezinha Ruiz, afirmou que está tomando providências para a construção de 30 escolas para os estudantes do turno intermediário.

 

Em Fortaleza, até dez dias atrás, uma lamparina a querosene era a alternativa de iluminação na escola Bem Me Quer. Foi a solução diante das goteiras, dos curtos-circuitos e do risco de choque para os 210 alunos e os professores. Na Rui Barbosa, o teto de uma sala desabou ano passado. Os alunos ficaram um mês sem aula.

 

Para os 660 alunos da Bem Me Quer e da Rui Barbosa, o ano começará com atraso. Eles serão transferidos para uma unidade que está sendo construída, com 15 salas, quadra poliesportiva, auditório e refeitório. Parte da obra deve ficar pronta em 2 de abril.

 

(O Globo, 15/3)


Data: 15/03/2009