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É proibido colar

Escândalo de professores da USP envolvidos em caso de plágio mobiliza intelectuais, que defendem ética em pesquisa e temem pelo futuro da produção acadêmica

Primeiro, a boa notícia: o porcentual de participação da América Latina no total de publicações científicas quase dobrou nos últimos anos. Saiu de 1,8% entre 1991 e 1995 para 3,4% de 1999 a 2003, segundo a Unesco.

Agora, a má notícia. No rastro desse crescimento, surgiu outro fenômeno do qual a comunidade científica tem menos razões para se orgulhar: o plágio intelectual, que há tempos se configura como um problema para grandes universidades no exterior e acaba de causar estragos na Universidade de São Paulo (USP).

Na segunda-feira, o Conselho Curador da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest) aceitou o pedido de demissão, feito "em caráter irrevogável", do professor Nelson Carlin, que até então era seu vice-diretor. Denunciado por fraude intelectual, ele recebeu uma moção de censura da reitoria, insuficiente para aplacar os problemas causados pelo episódio.

Só no ano passado, o Escritório de Integridade em Pesquisa (ORI) dos Estados Unidos recebeu 217 denúncias de plágio, abriu 14 investigações, encerrou 28 inquéritos - dos quais 10 registraram má conduta em pesquisa - e puniu 7 pesquisadores com medidas que incluem suspensão de financiamento e cassação de registro. Por falta de um organismo que cuide da questão no Brasil, não é possível contabilizar os casos de má conduta e medir o estado da integridade da pesquisa no país.

Por aqui, são situações exemplares que fazem barulho, como o caso envolvendo Carlin. O escândalo começou no Instituto de Física da USP, no ano passado, quando o professor Mahir Hussein acusou Carlin de ter copiado extensas partes de seus textos em artigo publicado no volume 75 da revista "Physical Review C".

Além da acusação de cópia, uma contagem de palavras indica que menos de 23% do artigo publicado é original. A apuração foi encerrada com o pedido de demissão de Carlin depois de um comunicado da reitoria que reconhecia o plágio e aplicava a moção de censura aos autores.

Diz o documento: "Embora os trabalhos científicos que foram objeto da investigação contenham pesquisa original, houve um desvio ético na redação dos mesmos por uma inaceitável falta de zelo na preparação dos artigos publicados. Isso resultou na consignação, pela comissão, de uma moção de censura ética aos autores, pela não-observância dos preceitos éticos da Universidade."

A moção de censura, distribuída por escrito ao corpo docente da USP, não foi exatamente bem recebida. Primeiro, por ter sido precedida de um comunicado oficial que pretendia manter silêncio sobre o caso. Depois, porque, desde que divulgada, os protestos contra o tratamento brando aos acusados de plágio se multiplicaram. Artigo do colunista da "Folha de S.Paulo" Marcelo Leite exigia da reitoria da USP uma "explicação completa do caso".

Embora o esclarecimento não tenha vindo, na trilha do texto de Leite houve numerosos protestos que fizeram eco à indignação do jornalista, ele mesmo ex-aluno da USP. Questões como o futuro da produção acadêmica no Instituto de Física e na universidade, a prática do autoplágio, os riscos de desmoralização do vestibular, já que Carlin era vice-reitor da Fuvest, e a importância de uma cultura que puna iniciativas de fraudes nos artigos científicos foram alguns dos pontos em discussão.

Desde que foi denunciado, o episódio de fraude suscitou amplo debate sobre o tema. As páginas das publicações dedicadas à ciência estão repletas de especialistas que discutem questões voltadas para ética em pesquisa, como a fraude pode ser evitada e quanto a "pressão por resultados" pode influenciar a baixa qualidade dos trabalhos, muitos deles se multiplicando pelo artifício do autoplágio.

"Não existe nenhum indício de que a incidência de faltas éticas nas universidades brasileiras seja superior ao que ocorre no resto do mundo", diz o professor do Instituto de Física Paulo Nussenzveig, que foi a público reivindicar a transparência nas investigações na USP. "Quando há uma denúncia, as instituições só podem resguardar sua imagem ao reagir vigorosamente, informando que atitudes, como falsificação de dados, plágio, duplicação de publicação, são práticas inaceitáveis."

O professor critica também a falta de transparência na maioria dos casos. "Ao manterem-se dúbios, frustram as expectativas daqueles que buscam justiça, minando sua confiança nas diretrizes éticas da instituição." Ele contraria, dessa forma, muitos de seus colegas que preferiam ver o caso da universidade paulista definitivamente silenciado.

Embora existam instrumentos institucionais para lidar com as denúncias, como códigos de ética e comissões de ética em pesquisa, outros países dispõem de mecanismos superiores que fizeram falta no processo da USP. Nussenzveig cita exemplos como o dos EUA ou da Alemanha, onde códigos federais de conduta permitem processos jurídicos em âmbito criminal e cível contra o pesquisador.

"Isso fornece parâmetros para as instituições, conferindo alguma uniformidade ao sistema", explica. Demonstra, ainda, a crescente preocupação mundial com o problema da integridade em pesquisa, campo ainda em construção no Brasil.

No ano passado, o ORI dos EUA e o Comitê Europeu de Ciências promoveram o primeiro congresso internacional sobre o tema. Embora 47 países estivessem representados, só havia 3 participantes da América Latina.

A única brasileira era Sonia Vasconcelos, pesquisadora do Programa de Educação, Gestão e Difusão em Biociências do Instituto de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que pôde participar de debates sobre as iniciativas de agências de financiamento, universidades e editores das principais revistas científicas para estabelecer medidas mais efetivas para lidar com casos de má conduta em pesquisa.

"Vários países do Ocidente seguem a noção de originalidade textual, o que não é necessariamente compartilhado por diferentes culturas. Em países como Cingapura, China e Coréia, identidade autoral e originalidade textual estão impregnadas da noção confuciana de propriedade intelectual, que tem um caráter bem mais coletivo. Para autores dessas culturas, os limites de originalidade textual podem ser interpretados de forma peculiar", explica Sonia.

Já a bióloga Márcia Triunfol, doutora em patologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com pós-doutorado nos EUA, onde viveu os últimos 12 anos, voltou recentemente para o Brasil e fundou a Publicase, empresa pioneira em comunicação científica.

Seu trabalho é o de ajudar os departamentos das universidades a aumentar sua capacidade de publicação, um dos critérios de avaliação que mais influenciam na hora de obter financiamento para pesquisas. "Há uma necessidade imensa no Brasil", diz. O que Márcia ensina aos doutores não está no currículo da maioria dos cursos. "Não se aprende redação científica na universidade."

Um dos muitos obstáculos que os pesquisadores brasileiros enfrentam é a dificuldade com o idioma. Alguns autores, diante da incapacidade de desenvolver uma redação própria em inglês, montam textos que são recortes e colagens de frases prontas, retiradas de diferentes artigos. Como o inglês é a língua hegemônica do campo científico - mais de 95% dos artigos na base de dados do Science Citation Index são no idioma -, o pleno domínio da língua é exigência fundamental para quem pretende publicar.

Em estudo recentemente publicado no "Embo Reports", do grupo Nature, pesquisadores brasileiros mostraram como a competência lingüística pode influenciar positivamente a produção e o impacto da pesquisa científica. Esse estudo - parte da pesquisa de doutorado de Sonia Vasconcelos - mostra que entre 40% e 50% dos cerca de 52 mil pesquisadores brasileiros com doutorado em 2005 consideram ter habilidade escrita em língua inglesa bem desenvolvida, conforme dados do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

O extenso relatório anual do Escritório de Integridade Científica indica que nos EUA a ênfase é em medidas preventivas que começam na graduação. Durante um ano - dos 18 em que trabalhou na Universidade de Notre Dame -, o antropólogo Roberto Da Matta presidiu o Comitê de Honra da faculdade, que chegou a ser acionado numa denúncia de plágio. Lá, como em qualquer universidade nos EUA, o aluno assina um termo de compromisso quando se matricula. Se flagrado em qualquer prática fraudulenta, vai a julgamento no comitê interno e pode ser expulso.

"O que aprendi em Harvard é que sempre devemos citar nossos mentores, nossos financiadores e as instituições que nos acolheram", diz Da Matta. Ele lamenta que a prática da citação esteja quase em desuso: "Em um sistema acadêmico consistente, citar deve ser um prazer e um orgulho".

Por aqui, a fraude é prática corrente entre universitários. Professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a socióloga Maria Teresa Citeli já encontrou plágios até em trabalhos de alunos de uma disciplina de graduação na qual discute o clássico "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Hollanda.

Mesmo depois de ler o capítulo sobre o "homem cordial" - expressão do autor para se referir à escassa rigidez ética dos brasileiros em determinadas questões -, alunos ainda ignoram o conteúdo do texto e usam expedientes heterodoxos de copiar trabalhos de colegas ou disponíveis na internet. "São textos falando de moralidade, mas eles nem percebem que também estão fazendo algo imoral." Ela adotou como regra reprovar quem copia e quem fornece material para a cópia.

Na Universidade de Brasília (UnB), a professora Dora Porto avalia a gravidade do caso antes de decidir que providências tomar. Em qualquer situação de plágio o aluno é chamado para uma conversa. Estudantes de graduação que apresentam cópias de textos capturados na internet são informados sobre as conseqüências do plágio, prática ilícita que pode ser enquadrada na lei de direitos autorais. "Como editora, recuso terminantemente os trabalhos nos quais detecto plágio."

Situação já enfrentada pelo editor e professor Marcelo Hermes de Lima, do Instituto de Biologia da UnB, que retirou um artigo da versão online do periódico "PLoS One". Os autores do texto plagiado foram punidos com dois anos de suspensão, período durante o qual ficam proibidos de publicar na revista. As regras de submissão de trabalho são explícitas contra o plágio e estão disponíveis no site da revista, comportamento raro nas publicações acadêmicas brasileiras, que oferecem poucas informações ao autor sobre os compromissos que ele assume ao veicular um artigo científico.

'"Estamos aprovando doutores com trabalhos que há dez anos não seriam aceitos como monografias de graduação", acusa Lima, um crítico veemente da política oficial. "Hoje, o que importa é que papers sejam produzidos, copiados ou não, e neste ano o Brasil chegue ao 14º lugar em número de papers no mundo", afirma.

Essa meta está ligada a outro objetivo quantitativo: chegar a 16 mil doutores em 2010, o que, segundo ele, só será alcançado em detrimento dos critérios de qualidade. Lima faz uma relação direta entre a moção de censura da USP a esse tipo de cultura do produtivismo. "A USP só faltou dar uma medalha aos pilantras, o que não ajuda nem contribui em nada para a discussão da ética na pesquisa."

Apoiado em dados quantitativos sobre o crescimento da produção acadêmica brasileira - em 1990, o Brasil respondia por apenas 0,5% da produção científica mundial, porcentual que subiu para 2% -, ele afirma que hoje a quantidade cresceu, mas a qualidade, quando medida pelo número de citações dos papers, caiu: enquanto os textos produzidos no Brasil obtêm apenas 3,5 de citação por paper, nos países desenvolvidos esse número varia entre 5,5 e 8,5 citações por trabalho.

"A pressão por produção não é privilégio do Brasil, é mundial", diz o professor Sérgio Ferreira, do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ. "É possível publicar sem produzir nada de impacto no meio científico", argumenta. Para ele, o problema está justamente na falta de ousadia que leva um pesquisador a preferir publicar dez artigos mais ou menos garantidos a se arriscar com dois textos mais inovadores, que vão, no entanto, render pontuação menor no seu Currículo Lattes, o sistema do CNPq de medição dos indicadores de desempenho e produtividade do pesquisador.

"Há no Brasil uma tendência exagerada nos critérios quantitativos", observa Ferreira. Segundo ele, o ideal seria que projetos e pesquisadores pudessem ser avaliados pelo conteúdo do que fazem, considerando itens como inovação e ousadia. Como método, ele sugere que o pesquisador, ao relacionar seus trabalhos mais importantes, apresente também uma breve resenha do que escreveu. "Pode ser ingênuo, mas seria uma forma de julgar também a qualidade", defende.

Para Dora Porto, a pressão para publicar pode influenciar negativamente a qualidade de um dado trabalho, mesmo que não se esteja falando de fraude. "Sem tempo para refletir ou aprofundar a reflexão, é possível que se produza material de menor qualidade", alerta, lembrando que na maioria das vezes os pesquisadores são reconhecidos pela quantidade de publicações que tenham amealhado ao longo da vida profissional.

"Clube da co-autoria", autoplágio e outros jeitinhos

A experiência do professor Marcelo Hermes de Lima, do Instituto de Biologia da Universidade de Brasília (UnB), como editor de revista científica o levou a mapear os diversos tipos de fraude intelectual. Há o que ele chama de "clube da co-autoria" - mais comum nas ciências exatas, nas quais o orientador é forçosamente co-autor do texto -, que funciona como um instrumento de multiplicação do número de artigos que cada autor publica.

Como trabalham em rede, todos os textos são assinados por todos os integrantes do grupo, permitindo que cada um engorde seu currículo com cerca de 25 textos por ano. A bióloga Márcia Triunfol afirma que, para se defender da prática, revistas internacionais já começam a recusar textos com dez autores e exigem que o artigo discrimine o que cada um fez no trabalho. Como a pesquisa brasileira é sempre muito pobre de recursos, muitas vezes um cientista que cede ao colega uma enzima cara ganha seu nome como autor do texto como forma de reconhecimento da participação.

Na área de meio ambiente, muitas razões podem levar um pesquisador a ganhar co-autoria em um trabalho, explica o diretor do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico, Fabio Scarano. Muitas vezes, o taxonomista - aquele que nomeou a planta - pode ter dado uma contribuição pequena em termos de pesquisa, mas teve participação fundamental no "batismo", sendo consagrado como co-autor. "Além do mais, como é uma área multidisciplinar, é comum haver trabalhos com até 15 autores", explica Scarano.

Para ele, a ética na pesquisa deve incluir questões como a publicação de artigos que atendem a interesses de laboratórios médicos. "Até que ponto isso é mais ou menos ético?", questiona. Scarano lembra ainda que decisões como usar um animal ou matar uma árvore para realizar pesquisas também podem ser comportamentos eticamente questionáveis.

São essas as questões para as quais o Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) se preparou para enfrentar. O médico e professor Dirceu Greco já foi presidente do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e hoje representa a universidade no Conep, fórum que, reconhece ele, não discute temas como plágio ou fraude intelectual.

Segundo Greco, o mais comum é que o problema apareça no momento da publicação e fique de fora das atribuições dos comitês, mais voltados para proteger voluntários em testes, entrevistas ou outras experiências científicas. "Trabalhamos para diminuir o problema no início da pesquisa", esclarece.

Um dos problemas mais difíceis de detectar é o autoplágio, que pode ser definido como uma técnica de duplicação de um artigo pelo seu autor, que, mediante pequenas alterações, publica o mesmo texto em diferentes revistas.

O comportamento é fenômeno mundial de tamanha proporção que já existe na internet uma base de dados que identifica artigos similares ou duplicados. Sob o sugestivo nome de Déjà Vu, o site (http://spore.swmed.edu/dejavu/) é mantido pelo Centro Médico da Universidade do Texas e relaciona 144 mil artigos em que alguma duplicação de citação é identificada, apontando para o primeiro indício de autoplágio. Baseado no programa eTBLAST, é um dos muitos sistemas disponíveis na internet para detectar cópias de textos. O Plagiarism, por exemplo, custa US$ 250 e promete "encorajar a honestidade acadêmica".

Outro tipo de fraude é a estratégia de "quebrar" um artigo em várias partes e distribuí-lo para diversas revistas, aumentando as possibilidades de publicação. Ainda que não seja exatamente uma cópia, é o que Lima considera um "método eticamente fraudulento", na medida em que divide o conteúdo relevante de uma pesquisa em textos distintos. Ele explica a fraude como resultado da pressão por publicação, que acabaria alimentando a indústria do plágio. Algo como explicar roubo como método para resolver uma necessidade.

 

(Valor Econômico, 10/10)


Data: 10/10/2008