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Cotas com qualidade para a escola pública

No Brasil, a pobreza tem cor. Entretanto, o modelo único imposto a todas as universidades federais fere sua autonomia

 

Por Gustavo Balduino


Estamos em uma nação de excluídos, na qual ter acesso ao ensino superior ainda é privilégio -apenas 10% da população com idade entre 18 e 24 anos está nesse nível de ensino. Mesmo a universalização do ensino médio está longe de se concretizar, pois somente 44,4% dos jovens entre 15 e 17 anos estão matriculados. Logo, qualquer brasileiro que concluiu o ensino médio pode ser considerado cotista de uma elite.

O projeto de lei nº 3.627/04, que reserva 50% das vagas nas universidades federais para alunos egressos das escolas públicas, negros e índios, trata de valores culturais e interesses importantes da sociedade. No momento, aguarda votação na Câmara.

Em inúmeras Ifes (Instituições Federais de Ensino Superior), o percentual de procedentes da escola pública já é próximo de 50%; em alguns casos, acima. Ocorre que muitos desses alunos estão concentrados em cursos de menor demanda. Boa parte é oriunda dos colégios militares, escolas técnicas, colégios de aplicação e Colégio Pedro 2º, os quais, embora públicos, abrigam alunos já pré-selecionados acadêmica e economicamente. Incluí-los nas cotas seria um privilégio descabido.

Sabemos que a implantação de cotas enfrenta resistência, sobretudo por parte daqueles que confundem mérito com pequena quantidade. A pertinência social do projeto está condicionada à combinação entre o atendimento aos alunos egressos do ensino público, a permanência destes nas Ifes e a manutenção da qualidade.

Um dos argumentos usados contra cotas é a aparente contradição com o mérito. Desconsiderar que o ensino superior forma a elite de um país é ignorar o seu papel estratégico. No entanto, essa elite deve ser intelectual, e não econômica.

Mérito e cotas podem ser combinados, por exemplo, beneficiando apenas aqueles que alcançarem uma nota mínima. O reforço acadêmico, que já é usual, permite preencher lacunas na formação dos alunos. Também é necessário criar condições de permanência como subsídios para alimentação, moradia e transporte aos estudantes carentes.

Outro argumento contra é que os governos deveriam cuidar da qualidade do ensino básico público. Embora verdadeiro, não impede que ações afirmativas de caráter socioeconômico possam vir simultaneamente a medidas de qualificação do ensino público, como o Fundeb.

As cotas sociais podem inclusive colaborar para a melhoria do ensino público. A provável migração de setores da classe média colocará nesse ambiente usuários mais conscientes e organizados para demandar dos governos maior atenção e investimento. Quanto à questão racial, é necessário que a sociedade brasileira reconheça a discriminação ocorrida desde seus primórdios e busque superá-la.

A solução passa pela educação cidadã de todos, e não pela separação legal entre brancos e negros. Se assim fosse, qual a justificativa para não estabelecer cotas raciais para todos os concursos públicos? Nas empresas? Nos partidos? E nos Parlamentos? Estes sim, com a obrigação de representar o perfil da sociedade brasileira. Mas, se por hipótese, na tentativa de inclusão, instituíssemos essa regra em todos os ambientes sociais e de Estado, estaríamos resgatando uma dívida ou segmentando definitivamente a sociedade? O que impedirá restaurantes, ônibus, locais públicos em geral de separar lugares para 'beneficiar' negros?

Esse talvez seja o caminho mais rápido para a legalização de abomináveis comportamentos racistas e um conseqüente retrocesso nas nossas relações étnicas.

Assim, é impróprio e não deveria constar da lei. Já temos uma sociedade dividida em classes, não precisamos dividi-la em cores.

Se o objetivo é a inclusão ou democratização do acesso ao ensino superior, será melhor tratado com a implantação de cotas socioeconômicas, o que certamente interferirá de maneira objetiva na questão étnica. No Brasil, a pobreza tem cor. Entretanto, o modelo único imposto a todas as universidades federais fere sua autonomia. Algumas instituições, cada uma a seu modo e ao seu tempo, já implementaram diferentes sistemas. Essas experiências devem ser consideradas.

O projeto de lei merece ser discutido e aprimorado sem preconceitos nem como saída milagrosa da exclusão. No entanto, a lógica da inclusão no ensino superior deve ser de políticas públicas universais, como a expansão, interiorização, cursos noturnos e ensino à distância, sempre com qualidade. Ações afirmativas, como cursinhos pré-vestibular, bolsas e cotas só podem ser acolhidas como soluções parciais e temporárias.

 

(Folha de S. Paulo, 26/7/2006)


Data: 21/08/2008