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Brasil não conhece seus superdotados

Altas habilidades não são raras por aqui, mas falta apoio

 

Eles são temas de filmes e livros. Mundo afora são exaltados como figuras raras cujo potencial, quando bem aproveitado, gera resultados notáveis para a sociedade. Einstein e Mozart são ilustres membros deste seleto grupo. Lembrados com freqüência quando se descobre um novo gênio com altas habilidades. É curioso observar que entre os superdotados notáveis poucas vezes (ou quase nunca) se vê uma referência nacional. Seria o Brasil desprovido destes talentos? Especialistas dizem que não.

 

Estima-se, inclusive, que há mais superdotados no País do que se tem notícia. A falta de ações que estimulem o potencial destes alunos acima da média, no entanto, reforça a impressão equivocada de que por aqui eles simplesmente não existem.

 

Um levantamento feito pela OMS (Organização Mundial de Saúde) aponta que há oito milhões de superdotados no Brasil. Mas o indicador da organização utiliza apenas o Q.I (Coeficiente de Inteligência) como medidor de altas habilidades. Quem entende do assunto e considera o teste ultrapassado avalia que o número pode ser muito maior se considerarmos as inteligências múltiplas do psicólogo Howard Gardner para medir a capacidade de um indivíduo.

 

Isso significa que, ao contrário do que muitos pensam, além de altas habilidades na área musical e lógico matemática - estereótipos de um superdotado - também é possível que um indivíduo deste grupo seja brilhante nas áreas lingüística, espacial, cinestésica, interpessoal e intrapessoal. "Um exemplo disso é a ginasta Daiane dos Santos. Ela tem um desempenho fora do comum na área corporal-cinestésica", explica a presidente do Consbrad (Conselho Brasileiro para a Superdotação), Susana Graciela Barrera Pérez.

 

Segundo Susana, o preconceito de que não há superdotados no Brasil é um dos fatores que desencadeariam a falta de atenção do poder público e da iniciativa privada para com estes alunos. Embora a legislação preveja atendimento especial para pessoas com altas habilidades, já que seus direitos estão garantidos no texto da LDB (Lei de Diretrizes e Bases), eles são tratados como pessoas com necessidades especiais. Ocorre que, no Brasil, há uma impressão equivocada de que o termo necessidades especiais significa apenas pessoas com deficiência. Tanto é que, de acordo com Susana, nos últimos anos houve uma articulação social em prol dos direitos dos portadores de deficiência, o que é muito positivo. Quanto aos superdotados, as políticas públicas e o interesse social continuam incipientes.

 

"Nos últimos anos, os portadores de deficiência obtiveram maior reconhecimento e conquistas importantes, como a questão das cotas no trabalho. Os superdotados não. Faltam políticas públicas de incentivo ao emprego, ao esporte, até medidas mais pontuais como ajuda para que estes jovens não precisem se deslocar de sua escola para obter treinamento adequado", explica Susana.

 

Para Susana, muita gente não considera que haja um problema com relação aos superdotados no Brasil. Na maior parte dos casos, devido aos mitos acerca da super inteligência. Há quem diga que não existem superdotados carentes quando boa parte deles é de origem humilde e não tem recursos. "Ainda são poucas as ações voltadas para as altas habilidades. As poucas iniciativas que existem funcionam e são exemplos bem-sucedidos, mas, em geral, estão condicionadas ao interesse político dos governos", critica ela.

 

Antes da criação do Consbrad, em 2003, as ações para superdotados eram ainda mais isoladas. Alguns estados possuíam associações para altas habilidades e outros não. O Conselho propôs uma unificação nacional de ações em benefício de pessoas com altas habilidades e também se articulou para exigir do MEC (Ministério da Educação) a criação de políticas públicas especiais para atender a superdotação. "A lei pró-altas habilidades já existe desde 1971, mas nunca se efetivou nada nesse sentido. Apenas em 1996, uma proposta da LDB previa que os talentos com altas habilidades fossem atendidos em aula regular por professores preparados. Só a partir de 2005, o MEC passou a olhar com outros olhos a questão da política educacional para os alunos superdotados", explica Susana.

 

A partir desta data, o MEC criou os NAS (Núcleo de Atendimento a Altas Habilidades/Superdotação), órgãos que funcionam em cada estado do país e articulam políticas públicas e capacitam professores, além de oferecer atendimento aos superdotados das diferentes regiões. Na opinião de Susana, um avanço considerável em relação ao que se tinha anteriormente, mas ainda pequeno diante das necessidades da população. "Há um NAS para cada estado. Muitos deles já funcionam de forma descentralizada, ou seja, para capacitar professores das mais diferentes cidades para prestar atendimento aos alunos. No entanto, são poucos núcleos para o desenvolvimento e aproveitamento destes talentos", diz.

 

Uma política eficiente nesse sentido não depende só do governo federal e do próprio MEC, acredita Susana, mas do interesse dos governos estaduais em criar salas de recursos para atender alunos e capacitar professores de forma que não seja necessário um grande deslocamento para que os superdotados recebam atendimento de qualidade. "Alguns estados como o Rio Grande do Sul e o Paraná já possuem políticas públicas estaduais de apoio às altas habilidades, como por exemplo, a criação de mais salas de recursos para capacitação dos professores. No Rio Grande do Sul, há uma preocupação em capacitar constantemente os professores para que os alunos não precisem se deslocar de sua escola e sua cidade para serem atendidos. O problema é que outros estados não têm ou não podem dar garantia da continuidade do trabalho desenvolvido em prol das altas habilidades porque dependem do interesse político dos governos estaduais. Nestes casos ficamos apreensivos", diz Susana.

 

Reação em cadeia

 

Pensar em políticas públicas que atendam as necessidades dos superdotados é uma necessidade à medida que sua ausência causa uma reação em cadeia que desestimula estes talentos. Segundo especialistas, se o aluno superdotado estiver regularmente matriculado numa escola tradicional que não ofereça capacitação, não terá treinamento. Se ele não tiver condições financeiras para se deslocar até uma sala de recursos, não conseguirá se desenvolver. Em muitos casos, a família não está preparada para lidar com este jovem. Com isso, continuar na escola regular com outros colegas, mas sem se desenvolver será desestimulante e até frustrante para o indivíduo.

 

Essa reação pode desencadear problemas sérios e, nos casos mais graves, levar o indivíduo ao suicídio, ao sentir-se incompreendido num mundo em que não se adapta. A presidente da APAHSD (Associação Paulista para Altas Habilidades e Superdotação), Ada Cristina Garcia Toscanini, afirma que já recebeu inúmeros casos de crianças superdotadas que já haviam tentado o suicídio, mais de uma vez, inclusive.

 

Em geral, são crianças com histórico escolar ruim porque não se adaptam às escolas. Crianças que, como forma de protesto, não se dedicam aos estudos, o que fazia seus professores as julgarem desinteressadas quando na verdade estavam desmotivadas porque não obtinham atendimento especializado. Crianças que perderam as esperanças, assim como seus familiares.

 

"Em boa parte dos casos, estas crianças chegam à APAHSD sedadas e dependentes de calmantes que, na maior parte dos casos, desencadeiam a depressão. A OMS já apontou em seus relatórios que o maior índice de suicídios está entre adultos superdotados. Certamente são adultos frustrados por serem incompreendidos desde a infância. Todos os dias vemos isso na associação. É grande o número de crianças que chegam sedadas porque seus pais não sabem mais o que fazer e optam pelos medicamentos", lamenta Ada.

 

Daí a necessidade em não só fazer um diagnóstico rápido em relação à superdotação de um indivíduo, mas de dar apoio às famílias, investir nas escolas e na capacitação de professores para atendê-los como se deve. "A crítica ao nosso país é justamente em relação à deficiência de algumas escolas de ensino básico e fundamental cujos profissionais sequer estão capacitados para atender as crianças com desempenho normal, quanto mais aquelas com altas habilidades", afirma Cláudio Guimarães, psicoterapeuta que trabalha com superdotados na Unidade de Reabilitação Neuropsicológica, em São Paulo. Embora ele faça uma ressalva de que há escolas boas e ruins como em países de primeiro mundo, também concorda com o despreparo de muitas outras e de seus professores.

 

O psicoterapeuta, porém, defende que não se deve cobrar apenas do professor a capacitação para que ele atenda com eficiência a estes alunos, mas apoio de toda uma estrutura pedagógica para que esta criança com habilidades especiais possa se desenvolver corretamente. "Lidar com o superdotado não é só uma atribuição do professor na escola. O orientador pedagógico e o psicólogo formam uma equipe que irá nortear o futuro deste aluno", afirma ele.

 

Segundo Guimarães, cabe ao professor estimular o aluno em sala de aula, entender até que ponto pode ajudá-lo e quando é hora de passar o trabalho para outro. Já às escolas, flexibilidade para não obrigar o aluno a cumprir uma grade curricular entediante e desestimulante. Deve-se propor novas atividades sem tirá-lo do convívio com os colegas, já que este ambiente é importante para seu desenvolvimento pessoal. "Um superdotado normalmente se destaca numa grande área, as outras continuam precisando ser estimuladas, assim como para as demais crianças", explica Guimarães.

 

Neste ponto, todos os especialistas são unânimes: não se deve retirar um aluno superdotado do convívio dos demais. Estudiosos afirmam que o convívio com as diferenças é importante não só para o portador de altas habilidades como para o restante da turma. "Muitos imaginam que por serem super inteligentes eles são mais maduros e por isso os superdotados acabam sendo tratados como 'adultos anões', quando na verdade são crianças que precisam desenvolver seu lado emocional no mesmo nível que as outras. O filme sobre a vida de Mozart é um exemplo clássico. Apesar de absolutamente brilhante na música, sua personalidade revela extrema imaturidade até o fim da vida", lembra o psicoterapeuta.

 

Por essa razão, muitos especialistas divergem em relação à aceleração de superdotados, processo em que o indivíduo pula uma ou mais séries escolares. O filme Mentes que Brilham (1991) - com a atriz Jodie Foster no papel da mãe de um garoto superdotado - retrata o tema quando o menino ingressa na universidade, mas sofre com problemas de adaptação. No Brasil, por lei, quem não concluiu o Ensino Médio não pode ingressar no Ensino Superior, mas há casos de jovens como Aldo Vieira Pinto que foi acelerado em algumas séries e concluiu o Ensino Médio. Aos 14 anos ingressou no curso de licenciatura em Matemática na Uniplac (Universidade do Planalto Catarinense) e agora em 2008, aos 17 anos, cursa mestrado em Matemática na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).

 

O estudante foi acompanhado desde pequeno, quando ainda estudava numa escola pública de Lages, Santa Catarina. No início da primeira série, após uma análise de psicopedagogos da instituição, ele conseguiu avançar para a segunda. O mesmo se repetiu na quinta série, em que o aluno cursou apenas um mês e, novamente, no segundo ano do Ensino Médio. Ao todo, o estudante concluiu em 11 anos o que a maioria das pessoas só consegue fazer em, no mínimo, 15 anos. O estudante, porém, não considera só o talento para ter pulado tantas etapas da vida acadêmica. "Os resultados também foram fruto de muito esforço e dedicação", diz Pinto.

 

Na universidade, ele conta que sempre foi muito tímido, mas mesmo assim fez grandes amizades. O mesmo acontece agora no mestrado. Bem recebido na instituição, ele não acredita em receio por parte dos colegas e se sente plenamente adaptado. "As pessoas têm uma imagem de que o superdotado tem dificuldade em se relacionar. Comigo não há problemas", diz. Ainda faltam dois anos para o mestrado acabar. O estudante não sabe se será acelerado novamente, mas não se preocupa muito com isso. "Hoje, minha maior preocupação é fazer um bom curso, depois, ingressar num doutorado. As outras portas que se abrirem daqui para frente serão conseqüência de muito estudo."

 

(Portal Universia)


Data: 04/06/2008