topo_cabecalho
Mestrandos do Iuperj relatam experiência e refletem sobre as normas espanholas para imigrantes

Detidos por 50 horas pelas autoridades espanholas e impedidos de entrar no país, a estudante de mestrado em Ciências Políticas, Patrícia Duarte Rangel, questiona: "Como considerar legítimos procedimentos que violam os direitos humanos?"

Seu colega Pedro Lima, vai além: "Se ainda defendemos a possibilidade de que a liberdade dos homens se sobreponha à liberdade do dinheiro e das mercadorias, então há que se ver neste caso um sofrido sintoma de uma neurótica política européia de controle que, não por acaso, tem na Espanha um de seus mais truculentos agentes."

Os dois foram impedidos de entrar na Espanha na semana passada, quando estavam a caminho de Lisboa para um congresso de Sociologia.

Leia o texto de Patrícia Duarte Rangel:

"'Sua viagem de turismo acabou'. Foram essas as últimas palavras que ouvimos em solo espanhol. Digo, em território internacional, pois estávamos 'em trânsito' no tempo em que estivemos indevidamente detidos em Madri, conexão do nosso vôo para Lisboa, onde participaríamos de um congresso da Associação Portuguesa de Ciência Política.

Obra do destino ou não, a frase condensa as características de nossa estadia nas dependências da Polícia de Migração: ironia, desdém, maus-tratos, humilhação e ignorância.

Durante dois dias, fomos tratados como gado: a nós não era dirigida nenhuma palavra que não ordens, não tivemos o direito de nos pronunciar e muito menos de contestar as falsas afirmações a nosso respeito. Mas não é minha intenção aqui narrar todos os abusos da polícia espanhola ou detalhar a condição sub-humana a qual fomos submetidos.

Creio que isso a imprensa brasileira já o fez amplamente. O que acredito ser capaz de fazer no atual momento é contar as duas grandes conclusões às quais cheguei após minha 'viagem de turismo': uma se refere à política internacional e a outra, a relações humanas.

A primeira conclusão me veio quando ouvi a opinião de um dos chefes de polícia, que discutia com meu colega de mestrado Pedro. A opinião do policial sobre soberania nacional, que representa a do governo espanhol, é uma concepção anacrônica que remonta à formação do Estado-nação.

Eles parecem simplesmente ignorar a existência de um Sistema Internacional composto de complexas relações de interdependência. Realmente acreditam que um país possui o direito de agir arbitrariamente, inclusive contra cidadãos de outros, e batem no peito para dizer que todas as suas ações são respaldadas por leis aprovadas pelo Parlamento e, portanto, pelo povo espanhol.

Eles possuem uma interpretação esquizofrênica de democracia que eu não sou capaz de compreender e muito menos de explicar. Como considerar legítimos procedimentos que violam os direitos humanos?

A segunda conclusão a que cheguei, com base no tratamento cruel que recebemos das autoridades policiais, é que a dimensão da dignidade e do respeito depende de uma noção de reconhecimento que, infelizmente, muitos europeus não desenvolveram em relação aos povos do Sul.

Daí os maus-tratos que sofremos em Madri, as perseguições de turcos por skinheads alemães, o assassinato de Jean Charles de Menezes, etc., etc. Esses crimes somente cessarão com mudanças nas práticas sociais e transformações na dimensão jurídica e nos controles institucionais.

Em relação a modificações nas regras que regulam a migração, até a polícia espanhola concorda que elas são necessárias. 'Admito que cometemos abusos, portanto, as regras têm que mudar para que não haja mais casos como o seu'.

Foi o que ouvi de um dos poucos policiais que conversaram comigo, na última noite de minha 'viagem de turismo'. Essas sim, eu gostaria que tivessem sido as últimas palavras a ouvir em solo espanhol, digo, em território internacional."


E leia também o depoimento de Pedro Luiz Lima:

"O lado de dentro da prisão dificilmente pode ser compreendido a partir do lado de fora. O roubo arbitrário e injustificado da liberdade pode ser teorizado das mais diversas maneiras, alcançando os tantos êxitos que advêm da teoria; mas o peso da prisão pode apenas ser sentido - e a razão analítica se rende, então, impotente frente ao sentimento da opressão.

Ao mesmo tempo, porém, a incursão relevante na esfera pública exige que da experiência individual se universalizem os conteúdos que dizem respeito à comunidade como um todo.

Nesse sentido, há que se buscar uma boa medida entre o insuperável desconforto subjetivo, intrínseco a todas as palavras neste momento, e a necessária referência a uma totalidade com relação a qual o caso específico aparece como epifenômeno.

O relato da dor experimentada nas cinqüenta horas de prisão a que eu e minha colega Patrícia Rangel fomos submetidos no aeroporto de Madri - relato este já parcialmente publicado nos mais diversos meios de comunicação - guarda certamente a sua importância para a divulgação de uma conduta autoritária absurda que vinha coagindo centenas de brasileiros.

Mas, para além da descrição minuciosa dos maus tratos e da truculência dos guardas espanhóis, é tanto ou mais importante bem relacionar o caso dos dois estudantes indevidamente "inadmitidos" (eufemismo preferido da oficialidade espanhola) ao quadro geral das "inadmissões" em massa de brasileiros nos últimos tempos.

Com este intuito, é preciso identificar duas chaves interpretativas possíveis para a análise da nossa detenção. Uma primeira leitura dos acontecimentos parece sugerir uma versão que eu chamaria de hipótese da anomalia (ou da disfuncionalidade).

Por esse viés, trata-se do seguinte: as normas da União Européia, mais especificamente do Espaço Schengen, estariam em conformidade com os princípios do Estado de direito e, sendo assim, seriam legítimas.

A partir desta legitimidade - já duvidosa por si mesma, dado o déficit democrático de seu fundamento -, a polícia de fronteira espanhola nada mais realizaria do que aplicar as normas da maneira mais objetiva possível.

Sendo assim, impedir a continuidade da viagem de estudantes que portam todos os documentos exigidos e satisfazem todas as condições para a entrada neste espaço regulado representaria um erro de procedimento. Que este procedimento falho tenha se dado apenas 27 horas depois do nosso enclausuramento revelaria, então, justamente o quão arriscado é fazer a aplicação da norma depender tanto de uma discricionariedade bêbada de preconceitos.

Deste eixo de análise, portanto, conclui-se: os estudantes, assim como os outros tantos turistas injustamente detidos, estariam na margem de erro da aplicação da norma e seu aprisionamento por mais de dois dias seria efeito da distorção de preceitos legais legítimos em si mesmos. Por uma disfunção do sistema, centenas de brasileiros teriam sofrido com a prisão e com todos os seus efeitos perversos, físicos e mentais.

A meu juízo, contudo, a anomalia evidente na nossa prisão (minha e de tantos outros brasileiros detidos no arrepio da lei) sugere ainda uma outra leitura. Terá mesmo se devido a uma disfunção do Estado de direito "europeu" a nossa permanência por tantas horas ao sabor das arbitrariedades dos autoritários, quer dizer, das autoridades espanholas?

Será que o nosso despejo simboliza apenas isso: um equívoco grave de uma política aguerrida de controle de fronteiras que pôde confundir meros estudantes e turistas com supostos imigrantes ilegais em potencial?

Aqui, eu gostaria de sugerir um outro eixo interpretativo, que toma estes últimos eventos não como conseqüências não-intencionais de uma norma justa, mas antes como efeitos intrínsecos de uma política de controle cada vez mais agressiva no trato com trabalhadores do sul.

Em um mundo sistemicamente dividido entre "turistas e vagabundos" (Zygmunt Bauman), em que uma economia global desenfreada cada vez mais impõe as regras do jogo, todos os trabalhadores do sul representamos um perigo para a estabilidade, evidentemente inexistente e ilusória, do mercado europeu.

Em uma palavra: com o rebaixamento do Estado de direito a mero cão de guarda de um regime econômico que quanto mais se globaliza mais parece incapaz de suprir as necessidades humanas, a expulsão paranóica de brasileiros não é apenas um erro de procedimento. Trata-se, antes, do propósito central de uma política de Estado esquizofrenicamente voltada para assegurar as condições naturalistas de um mercado cego às demandas humanas da globalização.

Nesse sentido, enxergar na nossa prisão, minha e de Patrícia Rangel, um mero erro de aplicação de normas leva a uma aceitação silenciosa da sistêmica divisão da humanidade entre turistas e vagabundos. Seríamos apenas "turistas" e o problema estaria em terem nos confundido com "vagabundos".

Em outros termos, seríamos dinheiro em potencial para a União Européia, e o erro estaria em terem nos confundido com meros homens. Mas se ainda defendemos a possibilidade de que a liberdade dos homens se sobreponha à liberdade do dinheiro e das mercadorias, então há que se ver neste caso um sofrido sintoma de uma neurótica política européia de controle que, não por acaso, tem na Espanha um de seus mais truculentos agentes.

Resta esperar, enfim, que a publicização do sofrimento de tantos brasileiros e a privação de nossa liberdade sirvam, ao menos, para construirmos um olhar reflexivo sobre uma barbárie que se reproduz, no coração mesmo da assim chamada "civilização européia", como segunda natureza."


Data: 11/03/2008