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Primeira faculdade do Brasil completa 200 anos

Faculdade de Medicina da Bahia comemora seu bicentenário nesta segunda-feira, 18. Fundação foi uma das primeiras medidas de Dom João VI após a chegada da família real ao país em 1808

A Faculdade de Medicina da Bahia (Fameb), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), completa 200 anos nesta segunda-feira, 18. A data será marcada por uma série de homenagens e pelo seminário Perspectivas da Medicina no Século 21, de 19 a 21 de fevereiro. A programação de comemorações se estende até o dia 15 de dezembro.

De acordo com o diretor da faculdade, José Tavares-Neto, a mais antiga instituição de ensino superior do Brasil nasceu com o nome de Escola de Cirurgia da Bahia e foi uma das primeiras medidas tomadas pela Coroa portuguesa após a chegada da família real a Salvador, em 22 de janeiro de 1808.
"Poucas instituições no país têm tanta história para contar. Um dos tesouros mais preciosos de Salvador, ao lado dos arquivos da Igreja, é o conjunto de atas da congregação da faculdade, que remonta a 1826. Trata-se de um testemunho da história do Brasil", disse Tavares-Neto à "Agência Fapesp".

Apesar da importância, o acervo histórico da Fameb, com um total de 100 milhões e 200 mil páginas, corre risco de desaparecimento. "Entre 2004 e 2007 conseguimos recursos da Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] para reordenamento e limpeza de todo esse material, que hoje está disponível para pesquisa. Mas os documentos, especialmente os dos primeiros 50 anos, estão muito fragilizados e, se não forem digitalizados e tratados, não deverão durar mais que cinco anos", disse o diretor.

A digitalização de todo o arquivo, segundo Tavares-Neto, foi avaliada em R$ 1,2 milhão. "Ainda não conseguimos esses recursos, o que é uma grande preocupação nossa. Enviamos projetos ao BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] e ao Banco do Nordeste, que foram negados. Queremos abrir uma licitação para que uma empresa faça essa digitalização", contou.

Desde 2004, os arquivos estão de volta à sede tradicional da instituição no Terreiro de Jesus, no centro histórico de Salvador, assim como a diretoria, a secretaria, os cursos de graduação e alguns programas de pós-graduação da faculdade, que durante 30 anos ficou dispersa pela cidade.

"Estamos reocupando o prédio. A expectativa é que até 2011 a sede original será completamente restaurada e o arquivo digitalizado", afirmou. A faculdade foi retirada do Terreiro de Jesus em 1971, como resultado da pressão do governo militar da época, que desde 1964 via a instituição como foco de resistência à ditadura.

"A Fameb sempre teve posição de liderança na oposição aos poderes autoritários. No século 19, foi a primeira instituição do Brasil a elaborar documentos contra o sistema escravocrata. Seus professores estiveram entre os primeiros republicanos da Bahia e alguns foram perseguidos por isso. Com o regime de 1964 não poderia ser diferente", apontou.

Com a retirada da faculdade, o prédio de 12 mil metros quadrados entrou em decadência. Em 1980, ruiu o principal anfiteatro, deterioraram-se a cobertura e paredes de algumas alas e, com a queda do teto da biblioteca, foram perdidos 50 mil livros. O prejuízo foi pior do que o do incêndio ocorrido em 1905.

"A volta foi autorizada em 1994, mas o prédio estava tão degradado que tiramos seis caminhões de lixo dos jardins. E dois caminhões só de cadeiras quebradas. A quantidade de ratos era tão imensa que o sistema de zoonoses não dava vencimento", contou o diretor.

A resistência ao regime vigente foi, segundo Tavares-Neto, o principal fator que levou ao fechamento do prédio. "O estopim foi um episódio ocorrido em 1968, quando a rainha Elizabeth 2ª , da Inglaterra, visitou o Brasil. Ao adentrar o Terreiro de Jesus, acompanhada do governador, para visitar a catedral, a rainha foi recebida com uma sonora e constrangedora vaia pelos alunos nas janelas do prédio", disse.

Não foi o primeiro problema da Faculdade de Medicina da Bahia com ditaduras. Em 1932, a faculdade foi a única instituição fora do Estado de São Paulo a apoiar a Revolução Constitucionalista. O presidente Getúlio Vargas ordenou a invasão do prédio. Dezesseis professores que lideravam o movimento foram presos por dois anos.

"O governo também prendeu 114 alunos por três dias e mandou bombardear a faculdade. A unidade da Força Aérea na Bahia, que tinha um único avião, executou a ordem no dia 2 de agosto de 1932, mas errou o alvo. Um artefato bélico caiu na encosta vizinha à catedral, fora do pátio, matando um popular", disse.

Alunos com escravos

Em 18 de fevereiro de 1808, Dom João 6º seguiu o conselho do cirurgião-mor do reino, o pernambucano José Correia Picanço, e fundou a Escola de Cirurgia da Bahia. A nova escola tinha dois professores e pouca organização. "Foi um início precário, mas a escola sobreviveu até a reforma do ensino de 1815, quando o curso passou de quatro para cinco anos e começou a se consolidar", disse Tavares-Neto.

"As atas da congregação revelam fatos pitorescos. Um deles relata a tentativa de um diretor de proibir que os alunos levassem escravos para a faculdade, porque, enquanto os senhores estavam em aula, eles faziam barulho. Foi vetado por unanimidade com a justificativa de que ele não tinha o direito de disciplinar propriedades particulares", contou.

Em 1829, no período de regência, a escola deixou de ser uma simples repartição do governo e passou a ter um corpo diretivo. Em 1832, o curso subiu para seis anos e ganhou autonomia. "Até ali a interferência do governador era imensa. As provas eram realizadas em sua presença", disse.

A partir daquele ano, a instituição ganhou o nome atual de Faculdade de Medicina da Bahia e passou a formar doutores e não mais cirurgiões. "Até ali, os professores eram chamados de lentes, porque de fato não faziam muito mais que ler os livros franceses para os alunos. Com a reforma, começamos a produzir teses. Temos arquivadas todas as 4.820 que foram defendidas", explicou. O curso prático, no entanto, foi inaugurado apenas em 1896.

O intercâmbio com a Europa era intenso e a maioria dos alunos tinha elevado poder econômico. "Em 1889, por exemplo, os grupos sangüíneos foram descobertos na Europa. Oito meses depois, havia alunos da faculdade baiana citando trabalhos sobre o tema", afirmou.

A partir de 1870, segundo o diretor da Fameb, a produção acadêmica se tornou menos discursiva e teórica e passou a ter uma construção científica sólida, com uma marcante influência francesa.

Em 1864, foi fundada na faculdade a Gazeta Médica da Bahia, primeiro periódico científico brasileiro. Em 1887, pela primeira vez no Brasil, uma mulher foi diplomada como médica: a doutora Rita Lobato Velho Lopes.

Também no interior da instituição, em 1894, nasceu a Sociedade Acadêmica de Medicina, o embrião do movimento estudantil no Brasil, segundo Tavares-Neto. A entidade foi responsável pela primeira greve estudantil do país, que fechou a faculdade por dez meses em 1902.

Em 1897, professores da faculdade realizaram, pela primeira vez no mundo, uma radiografia para investigação de um ferimento por arma de fogo. A vítima havia sido baleada no conflito de Canudos.

(Agência Fapesp, 18/2)


Data: 18/02/2008