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Quando Brasil tiver educação de 1º Mundo, Nordeste terá de 3º

Quando a educação brasileira chegar ao Primeiro Mundo, o Nordeste pobre vai estar mergulhado num triste Terceiro Mundo. Em 2022, ano do bicentenário da Independência e quando o País pretende atingir a meta do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) estabelecida pelo governo, só 44 cidades nordestinas da educação infantil à 4.ª série e 58 da segunda fase, da 5.ª à 8.ª série, vão alcançar esse nível. Os outros quase 1.400 municípios do semi-árido brasileiro, sertão que vai do norte de Minas ao interior do Nordeste, ficarão para trás.

 

O cruzamento das projeções do Ideb sobre a região, feito pelo Estado, mostra que, em dez anos, dois terços das cidades continuarão abaixo do atual nível de ensino brasileiro. Hoje, a média nacional é de 3,8 no primeiro ciclo e de 3,5 no segundo. A do semi-árido está em 2,7 nas duas fases. “Se o Nordeste vai ser de Terceiro Mundo, hoje ele é de Quarto”, arrisca o presidente do Inep, Reynaldo Fernandes, economista que criou o índice.

 

Só com um esforço maior o Nordeste pode reduzir a diferença. Não por acaso o ministro Fernando Haddad iniciou a Caravana da Educação visitando os Estados nordestinos. Das 1.242 cidades que receberão ajuda do MEC para melhorar mais rapidamente seu índice, 820 são do semi-árido. A reportagem visitou escolas da região, conversou com professores, diretores, pais e alunos. A realidade é dura para quem tem de ensinar ou aprender. Para eles, o Ideb chegou, mas ainda parece um número abstrato.

 

Ensino ruim, politicagem e Severino larga os estudos

 

Ele principia a letra S por baixo, vacila no E, titubeia com as pernas de um V, inverte o E, prossegue com o R e o I, leva um tempo no N e finaliza com um O torto. Numa voz encabulada, lê o que rabiscou no chão: “Severino. O resto, ‘Costa de Araújo’, não sei, não”. Aos 13 anos, Severino largou os estudos sabendo ler e escrever o primeiro nome e metade do alfabeto. Mais nada. O sobrenome e o mundão de palavras que a professora riscava na lousa ele ignora. Cansou de sentir-se um ignorante em sala de aula. Foi viver como um dos irmãos mais velhos, Abrão, que também não sabe escrever o sobrenome da família.

 

A Escola Municipal Felipe André Bezerril Souto, na cidade de Lagoa D’Anta, no Rio Grande do Norte, bem que tenta convencer Luzinete Alexandrino de Lima Araújo, de 54 anos, mãe de Severino, que educação importa. O Conselho Tutelar foi avisado das faltas freqüentes do garoto e de tantos outros que têm deixado de assistir às aulas. Mas não são só com cartas e visitas de diretores e professores que se pode convencer um aluno a não abandonar os estudos. Severino explica: “Não tinha nada de ruim, mas também não tinha nada de bom. Eu ficava com muita preguiça de acordar cedo e ir lá ficar só copiando lousa.”

 

Severino ainda acorda cedo. Uma vez que não quer estudar, a mãe entendeu que ao menos tem de ajudar o irmão de 30 anos na broca, o roçado visto como o futuro da família. “Ele não estuda porque não me obedece.” O dono dos três hectares cedeu a terra pelos próximos três anos. O que os Costa de Araújo plantarem será deles. Hoje só plantam esperança, porque têm muito que desmatar e capinar. Já às 7 horas, o garoto está escopeando os galhos espinhosos com a foice. Abrão, que ensinou o verbo ao repórter, vai arrancando os troncos retorcidos com o “enxadeco”. Expediente que só termina no fim da tarde. Em nenhum momento o adolescente diz sentir falta da escola.

 

Severino poderia trabalhar numa das várias casas de farinha de Lagoa D’Anta. Dezenas de alunos fazem isso. Dupla jornada ou única para os que largaram os estudos. Ganharia menos de R$ 100 por mês para descascar mandioca. A outra opção seria “pegar na lei”. O pai, que hoje vive longe, tentou convencê-lo de que era o pior dos mundos. Pegar na lei é virar bandido. Como o irmão mais velho, acredita que no meio do mato fogem desse risco.

 

A diretora Adezilda Bento de Medeiros, professora de história e na direção desde 2001, admite cansaço e desmotivação. São tantos Severinos. “A evasão é muito grande. A cultura da sociedade local não é motivada para o estudo”, explica.

 

Nascida em Lagoa D’Anta, Adezilda podia ser uma referência para professores e alunos. Filha de pai analfabeto e agricultora até os 18 anos, ela cursou o ensino superior até a pós-graduação (só 2 em cada 1.000 brasileiros chegam a esse nível). Mas a diretora não é vista como exemplo. E só a política, diz ela, pode servir de justificativa.

 

Em 2004, a prefeita da cidade teve o mandato cassado. Naquele ano e no outro, os grupos adversários transformaram cada centímetro do município num palanque político, inclusive as escolas. Professores da Felipe Bezerril dividiram-se. Uns apoiavam Adezilda, parte fazia corpo mole. Nos fins de semana e até durante a semana, havia festas regadas a forró e bebida. Na manhã seguinte, a freqüência em sala de aula desabava. Inclusive de educadores.

 

Pais ausentes

 

A professora Maria de Fátima Gomes da Costa sente-se desolada. Como se o diploma que tanto se esforçou para obter, educadora com nível universitário, valesse muito pouco. “Sinceramente, sinto-me sufocada”, diz ela, depois de encerrar uma sala de aula. Naquele dia, apenas uma aluna dormiu no turno da manhã. “Está mais difícil ensinar. Antes o professor era respeitado. Hoje os alunos não querem mais escutar.” Segundo ela, os pais deixaram de participar da educação dos filhos. Só fazem mandar as crianças para a escola e mais nada.

 

A distorção idade/série é outro fator que agrava o baixo desempenho da escola Felipe Bezerril. Mais de três quartos dos alunos enfrentam o problema. Há alunos pequeninos misturados aos grandões. Uns alfabetizados ao lado de outros que apenas copiam as letras do quadro-negro. Parece festa infantil. Uma sexta-feira normal, como a presenciada pelo Estado, tem educadores ensinando o 4.º ano a colar figurinhas numa folha de papel ou liberando a turma do 3.º ano para dançar forró e música brega na sala. “É difícil dar conteúdo. Você tem de ensinar para os que acompanham e fazer atividade extra para os que não acompanham”, admite o professor Renato Soares de Oliveira. “Sim, temos alunos da 5.ª série que não estão sabendo escrever”, admite a diretora Adezilda.

 

A taxa de evasão da escola é de 26% e a de repetência, 20%. Esta última só melhorou porque foi adotado o sistema de progressão continuada para as três primeiras séries do ensino fundamental. Os estudantes passam mesmo sem saber. São 698 alunos nos três turnos. Cada professor ganha, em média, R$ 740 para uma jornada de 30 horas semanais. Não está, assim, entre as piores remunerações da educação brasileira. Incluídas no Programa de Desenvolvimento do Ensino (PDE), as escolas da cidade torcem para que a ajuda federal chegue rápido. Antes de novas eleições.

 

(O Estado de São Paulo, 04/11/07)


Data: 05/11/2007