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Opinião - Che Guevara: cinema e imagem - Parte 6

Che Guevara: cinema e imagem - Parte 6

Wagner Braga Batista

 

A professora entrou na dependência escura onde o prisioneiro encontrava-se postado num caso. Entendeu-lhe o prato. Com as mãos amarradas, ergueu-o até aos lábios. Sôfrego, de uma só vez sorveu a sopa rala. Não houve comunicação no pequeno recinto, no entanto apesar do aspecto andrajoso, a jovem reteve a imagem altiva de Guevara. Possivelmente, naquele momento, sabia que seu destino estava traçado. Dois outros prisioneiros já haviam sido assassinados. Entre eles, Simeón Cuba Sanabria, Willy, guerrilheiro boliviano, que ficara ao lado de Guevara para lhe dar proteção. Encurralados, atrás de um lajedo, com Guevara baleado na perna e com o cano do fuzil inutilizado, só lhes restava esperar a noite para tentar o deslocamento. Esse intento não se realizou.

 

A tática do martelo e da bigorna, dera resultado. A tropa formada por recrutas empurrara os guerrilheiros na direção dos rangers, agrupamento melhor preparado para o confronto. Investiram sobre os guerrilheiros durante o dia. Nessas circunstancias, sem condições de resistir, Guevara foi capturado. para proteger Guevara ferido e com seu fuzil danificado.

 

De Quebrada Del Yuro onde foi capturado, foi levado com as mãos atadas à escola do pequeno lugarejo. O que ocorreu durante as horas que seguem, ainda não está claro. Submetido a interrogatório, Guevara recusou-se a fornecer informações estratégicas. Naquele momento, os serviços de informações já dispunham de um quadro bastante minucioso sobre os participantes e a sobre logística da guerrilha. Desde o dia 26 de setembro, a guerrilha vinham sofrendo baixas.

 

Dia 9 de outubro, aproximadamente ao meio dia, Felix Rodrigues recebeu a ordem de eliminar Guevara. O sargento Mario Teran apresentou-se como voluntario prontificando-se a cumprir a torpe missão: assassinar o prisioneiro. Do agente da CIA recebe orientação para fuzilá-lo da cabeça para baixo para simular a morte em combate.

 

O seco diálogo entre Guevara e seu sicário foi calado pelos tiros a curta distância. Tombado no chão de terra batida imerso numa poça de sangue, o corpo do Che ainda causava apreensão. Vários soldados se cercam para examiná-lo. Dez tiros tiraram-lhe a vida, contudo não haviam desfeito sua imagem.

 

As versões do assassinato e a imagem de Guevara foram várias vezes modificadas.

 

A farsa se instalara na imprensa. Em 11 de outubro de 1967, a Folha de São Paulo publicava: “Guevara foi um dos primeiros a cair na ação de domingo. Foi abatido enquanto se lutava frente a frente, a uma distancia de uns 50 metros. Um grupo de soldados o rodeou imediatamente e, sem saber ainda de quem se tratava, arrastou-o para as fileiras dos "rangers" (soldados especialistas em guerrilhas)...o corpo ficou estendido numa espécie de terra de ninguém por algum tempo, até que chegou um helicoptero de Valle Grande, a bordo do qual viajava o major Nino de Guzman, que conseguiu aproximar-se e ouvir as ultimas palavras de Guevara. A versão de La Paz coincide com a do general Ovando, em que essas ultimas palavras foram:"Sou Guevara e fracassei"” ( Como morreu Guevara Almanaque da Folha de São Paulo, URL:http://almanaque.folha.uol.com.br/mundo_11out1967.htm acessado em 2 de outubro de 2007) A imprensa, informada pelos militares bolivianos, inicialmente divulga sua captura e a seguir noticia sua morte em combate. Depoimentos e  registros fotográficos, feitos em Vallegrande, fora do local de combate, não permitiam apurar a veracidade das informações prestadas pelos militares bolivianos sobre a morte de Guevara.

 

A farsa prossegue com a exposição pública de seu cadáver. Com um litro e meio de formol injetado em suas veias, o corpo de Guevara será exposto mais de 24 h. O funesto espetáculo visava confirmar e capitalizar sua morte, bem como permitir que os camponeses externassem sua aversão frente aquele estrangeiro, que provocara a súbita mudança em suas rotinas, com a mobilização de tropas, interrogatórios e suplicio de alguns de seus familiares, acusados de colaboração com a guerrilha.

Preso ao esqui do helicóptero, o cadáver de Guevara foi se transfigurando. O vento das alturas, descerrou a manta que cobria o corpo, abriu suas pálpebras e revelou um olhar perdido na imensidão, divisando o impossível, alcançando o infinito.

 

No rictus, a inquietude registrada em suas últimas fotos, divulgadas em fevereiro de 2006, pelo jornal Clarin, dera lugar a um semblante sereno. Seu olhar expressava o vigor e a serenidade de quem viveu e morreu sabendo pelo que lutava, fiel as suas convicções, à revolução socialista pela qual tanto se empenhara.

 

Esta é a imagem de Guevara. Encarna a coerência e a austeridade com a qual será lembrado.

Os camponeses, que se mantiveram à margem da guerrilha, atraídos para o espetáculo lúgubre, perfilaram ante seu corpo. Ao invés de ódio, o cadáver de Guevara despertava admiração. Suscitava a idéia da imolação, do martírio. Uma paradoxal aproximação entre ideais de justiça, a identidade de propósitos entre um comunista e cristãos. Sob esse viés, o sacrifício de Guevara despertara sentimentos edificantes, materializara a renúncia de bens materiais para perseguir um ideal de justiça.

 

Associada ao martírio de Cristo, a imagem de Guevara teve alcance inacreditável. Sua trajetória de vida sensibilizou incrédulos, indiferentes, até mesmo seus inimigos. Aqueles que denegriam movimentos sociais, reduzindo-os à mera realização de interesses mesquinhos, imediatos e circunstanciais, foram levados a rever seus pontos de vista. A coerência de Guevara evidenciou que no terreno da prática fora possível conciliar convicção e fé. Consubstanciou num programa e numa prática política, o que os utópicos consideravam inexeqüível: a realização de virtudes humanas materializadas em prática de vida.

 

O espetáculo funesto da exibição do corpo de Guevara teve resultados inesperados. Contrariamente ao que os militares pretendiam a lavanderia tornou-se local de peregrinação. A mística popular santificara Guevara.

 

Dia 11 de outubro de 1967 seu cadáver mutilado, com seus dedos amputados para realizar prova datiloscópica na Argentina, desaparece. Seus restos mortais serão recuperados em escavações realizadas trinta anos depois, em 1997.


Data: 09/10/2007