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O Brasil em preto e branco

Obra reúne cientistas e intelectuais contra divisão racial no país

No passado a ciência foi usada para criar a idéia de raça. Agora, deve ser um instrumento para acabar com ela, argumentam cientistas e intelectuais. A raça, frisam, fomenta o racismo.

E, ao oficializá-la através de políticas públicas, o Brasil corre o risco de se ver partido.

A ameaça de polarização racial da sociedade brasileira é o tema central de “Divisões perigosas — Políticas raciais no Brasil contemporâneo” (Ed. Civilização Brasileira), organizado por Peter Fry, Yvonne Maggie, Marcos Chor Maio, Simone Monteiro e Ricardo Ventura Santos. A obra, que será lançada em 4 de maio, reúne textos de 38 autores entre antropólogos, sanitaristas, historiadores, sociólogos, psicólogos, educadores, economistas, cientistas políticos, jornalistas, representantes de movimentos sociais (ativistas do movimento negro em particular), críticos literários e poetas.

— O livro foi uma iniciativa de pesquisadores e pensadores com as mais variadas posições políticas e ideológicas e a preocupação de comum de alertar a sociedade para os riscos de políticas públicas baseadas na raça. Combater o racismo baseando-se na idéia de raça é uma contradição — afirma Yvonne Maggie, professora titular do Departamento de Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O antropólogo Ricardo Ventura Santos diz que o objetivo é ampliar a discussão sobre a racialização de políticas públicas, em particular nas áreas de saúde e educação. — Todos os 38 autores estão plenamente de acordo de que há preconceito e discriminação racial no Brasil. O ponto de disputa é a forma de superação das desigualdades.

Em vez de beneficiar uns poucos por critérios de cor ou raça, defendemos a universalização — salienta Ventura, pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz e professor adjunto do Departamento de Antropologia do Museu Nacional.

Segundo ele, projetos políticos oficiais pretensamente igualitários que buscam polarização da sociedade entre brancos negros e fortalecem o conceito de raças distintas podem suscitar a cisão racial. Marcos Chor Maio, sociólogo e pesquisador titular da Casa de Oswaldo Cruz, diz que o livro traz propostas que destoam do reducionismo racialista. Ele frisa a preocupação com iniciativas de promover a igualdade racial que incluem, por exemplo, comissões para determinar quem é negro no Brasil.

— Esse livro não é uma mera discussão sobre cotas raciais. Vai muito mais além. Estamos preocupados com o risco de divisão da sociedade. Promover uma separação em raças e etnias é uma estratégia que não vemos como a melhor forma de combater o preconceito e corrigir as injustiças no Brasil — diz Yvonne Maggie.

Ela cita como exemplo a organização da III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, de 22 a 25 de maio, em Fortaleza. Segundo Maggie, critérios raciais são usados para selecionar os delegados: — É chocante ver divisões assim. O racismo está sendo institucionalizado.

Simone Monteiro, pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz, vê velhos fantasmas serem ressuscitados: — Não podemos esquecer que o conceito de raça humana foi criado pelo racismo científico e ganhou enorme projeção com as políticas eugênicas. Apesar da biologia e da genética mostrarem que não há raças humanas, o conceito ainda é utilizado para separar e discriminar grupos sociais em função da cor. Propomos que em vez de recuperar e reforçar o conceito de raça se combata o preconceito e a discriminação racial pela afirmação dos direitos universais a educação, trabalho e saúde.

Ela lembra que a reiteração do determinismo biológico é um dos principais riscos das associações apressadas entre raça e saúde, por exemplo. E acrescenta que estudos já indicaram os perigos de legitimar o conceito biológico de raça e, desse modo, reforçar o preconceito racial e prejudicar ações de prevenção e assistência na área de saúde.

Opiniões

“Nenhuma pessoa de hoje tem culpa do que ocorreu no país há séculos. Não se pode punir os que não têm acesso a cotas ou ficará implícito que os brancos pobres são escravocratas. Temos que acabar com o racismo de um lado e de outro”
Ferreira Gullar, poeta

“Pode parecer fácil distinguir fenotipicamente um europeu de um africano ou de um asiático, mas tal facilidade desaparece completamente quando procuramos evidências dessas diferenças ‘raciais’ no genoma das pessoas”
Sergio Danilo Pena, geneticista

“O Brasil pode se tornar um país dividido entre negros e brancos, sim, trocando a valorização da mestiçagem pelo orgulho racial”
José Roberto Pinto de Góes, historiador

“Apesar de nosso atual debate sobre política de cotas contar com a participação de grandes historiadores, por vezes parece que, curiosamente, a história não ocupa o lugar merecido”
Ronaldo Vainfas, historiador

“A miscigenação virou elemento civilizacional positivo e válido. E além de válido, valioso”
Manolo Garcia Florentino, historiador

“A questão racial aprisiona e imobiliza a própria condição humana possível, a virtualidade que não se cumpre em relação a todos, não só os negros”
José de Souza Martins, Sociólogo

“A opção é simples: de um lado, uma sociedade em que o governo não se imiscui na identidade e na vida privada das pessoas, em que o princípio constitucional de igualdade é mantido, e em que as políticas sociais lidam com as causas da pobreza e da desigualdade; de outro, uma sociedade em que a cidadania passa a comportar ‘graus’, em função da cor da pele de cada um, a ser definida pelo movimento social, partido político ou pelo burocrata de plantão”
Simon Schwartzman, sociólogo

“Está em andamento no Brasil uma tentativa de genocídio racial perpetrada com a arma da estatística”
José Murilo de Carvalho, cientista político e historiador

“O Brasil não tem cor. Tem todo um mosaico de combinações possíveis”
Carlos Lessa, economista

“Diferenças étnicas causam os mais horrorosos conflitos e guerras pelo mundo afora. Não é razoável que aprendizes de feiticeiro os tragam para o Brasil”
George Zarur, antropólogo

“Cotas não resolvem o problema do povo negro e pobre das periferias deste país. Nem corrigem as distorções, pois elas são fruto das próprias desigualdades da sociedade em que vivemos, uma sociedade de classes”
José Carlos Miranda, coordenador Nacional do Movimento Negro Socialista

“Nas últimas décadas as políticas afirmativas americanas beneficiaram uma pequena parte dos negros, enquanto cresciam as desigualdades sociais e minguavam os investimentos públicos em educação, saúde e habitação”
Demétrio Magnoli, geógrafo e cientista social

“Temo que as cotas raciais possam, em última instância, ao tentar corrigir uma injustiça histórica pr opiciar uma outra discriminação: contra todos os brasileiros pobres que não se incluem nas categorias definidas como racialmente adequadas”
Isabel Lustosa, cientista política e socióloga

“Nossos governantes deveriam estar pedindo desculpas de joelhos aos cidadãos, em vez de melhorar as condições da educação básica para permitir às crianças de menor poder aquisitivo competir por seu lugar ao sol com seu próprio esforço, fazem o oposto. Criam programas demagógicos, racistas, baseados em dados falsos ou inexistentes”
Sidney Goldenzon, médico

“Um estatuto cujo maior objetivo é corrigir as desigualdades e a injustiça estará renovando a injustiça, só que agora com a cor da pele trocada”
Monica Grin, historiadora

“A adoção de cotas representará, sim, a estatização de ‘raças’ como identidade e estimulará ideais e reações racistas”
José Roberto F. Militão, advogado


Data: 30/04/2007