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Pobres já pagam conta do clima, diz painel

África, Ártico e deltas asiáticos são as regiões mais sensíveis ao aquecimento. Segunda parte do esperado quarto relatório do IPCC prevê extinção de espécies, falta d'água e inundações antes do final deste século

 

A combinação das mudanças climáticas e seus efeitos com a destrutiva presença humana deve vencer a capacidade dos ecossistemas de absorverem os impactos -e a conta, como de costume, será cobrada das populações mais pobres.

A falta d'água em regiões já secas, como o sertão nordestino e partes da África, e o excesso dela em áreas sujeitas a inundações, como os superpopulosos deltas de rios asiáticos, porão em risco "muitos milhões de pessoas" até 2080.

Esses cenários, medidos com um grau inédito de especificidade, foram apresentados ontem em Bruxelas (Bélgica) pelos cientistas do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática). Eles se apóiam em 29 mil séries de dados de observações, contidas em 75 estudos científicos.

Depois de demonstrar a culpa da ação humana nas mudanças climáticas em fevereiro, na primeira parte de seu Quarto Relatório de Avaliação (AR4), o IPCC agora fechou o elo comprovando a ligação entre tais alterações de temperatura e os impactos já observados nos ecossistemas da Terra.

A constatação mais trágica é que as regiões mais impactadas são justamente as mais pobres, "onde as pessoas são menos capazes de se adaptar à mudança climática", como disse o indiano Rajendra Pachauri, presidente do IPCC.

"É exatamente o que nós não gostaríamos que acontecesse: o aquecimento tornando um mundo desigual ainda mais desigual", declarou o britânico Martin Parry, co-presidente do grupo de trabalho que apresentou ontem o sumário executivo da segunda parte do AR4.

O texto, direcionado aos formuladores de políticas públicas, aponta que, até 2020, uma população de até 250 milhões de pessoas vai ser exposta à falta de água na África, com uma redução de até 50% na produção agrícola em alguns países.

O cenário é semelhante em diversas partes superpovoadas da Ásia, onde "mais de um bilhão de pessoas" podem ser afetadas até 2050. Na América Latina, é esperado que o aquecimento leve "à salinização e desertificação das terras cultiváveis" nas regiões mais secas.

A apresentação destacou o nordeste brasileiro, onde a recarga de aqüíferos pode cair 70% até a década de 2050.

A lista de ecossistemas já afetados é vasta: recifes de corais, o Ártico, florestas boreais, montanhas, regiões mediterrâneas e costeiras, manguezais.

Adaptação

O relatório tratou ainda das medidas de adaptação às mudanças climáticas que já são necessárias, uma vez que os impactos futuros são "inevitáveis devido às emissões [de gases-estufa] do passado".

"Apesar de toda a conversa sobre mitigação, nos próximos dez a 50 anos as estratégias de adaptação serão vitais e quanto antes começarmos a adotá-las, melhor", disse Parry.

"Mesmo que chegássemos a um consenso sobre mitigação, e progredimos pouco na última década, seus efeitos só seriam sentidos a longo prazo, por isso vamos ter de nos adaptar."

Alguns esforços adaptativos já estão ocorrendo, segundo o texto, mas ainda é preciso mais investimento nessa área, que tem "alguns limites e custos" que não foram totalmente compreendidos.

O clima da apresentação de ontem foi, como de praxe, sombrio, dadas as previsões e dados apresentados. Ainda assim, os cientistas evitaram a pecha de pessimistas ou catastrofistas.

"Não acho que as previsões sejam aterrorizantes, elas são sérias. Acima de tudo, não acho que estejamos exagerando. Pelo contrário, o IPCC tende a reduzir o impacto das informações, porque elas são revisadas", disse Parry.

Segundo o britânico, quem exagera a partir dos dados apresentados é a imprensa e a população que recebe as notícias.

"Acho que o público e a imprensa já estão à frente da ciência em termos de previsões catastróficas, fazendo conexões que ainda não estão nos dados."

O otimismo torto do IPCC foi bem traduzido pelo outro co-presidente do atual grupo de trabalho, o argentino Osvaldo Canziani. "Algum dia aprenderemos, as pessoas aprendem quando apanham."

A surra climática, nitidamente, já começou. Resta acudir quem está sentindo.


Data: 09/04/2007