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Lavoura sofre efeitos do aquecimento

Embrapa e Unicamp mostram que perda do setor cafeeiro, em até duas décadas, pode ser de US$ 375 milhões

Nem um país tropical como o Brasil escapará da agrura do aquecimento global. As principais plantações serão afetadas, com reduções brutais na área cultivada e, por conseqüência, na produção.

O cenário negativo tanto vale para commodities tradicionais, como café, como para culturas que recentemente receberam investimentos vultosos, como a mamona para produção de biodiesel.

Sem ações de mitigação, milhões de toneladas de produtos agrícolas deixarão de ser produzidos.

O quadro foi desenhado em detalhes por um grupo de pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

É uma projeção bem distante da futurologia, como percebe-se no campo: cientistas e produtores têm travado diálogos com a mesma regularidade de eventos extremos como secas e tempestades históricas - cada vez mais freqüentes.

O estudo mapeia as mudanças para culturas essenciais para o setor no Brasil contando um acréscimo de 1°C, 3°C e 5,8°C na temperatura e 15% a mais de chuva.

Arroz, milho, feijão e café sofreriam uma perda de 23% a 92% da produção porque o ambiente ideal para o plantio encolheria.

"No futuro, vamos tomar café argentino", comenta um dos autores do estudo, o meteorologista Hilton Silveira Pinto, da Unicamp.

Impacto e resposta

A perda para a economia seria imensa. A agricultura hoje responde por 21% do Produto Interno Bruto (PIB), ou US$ 153 bilhões.

Só o café deixaria de contribuir com cerca de US$ 375 milhões com apenas 1°C a mais - cenário considerado seguro e certo em no máximo duas décadas.

A soja, para não sofrer uma redução de 64% na pior das hipóteses, tomaria a Região Norte - que sofreria um processo violento de savanização com o aquecimento global, segundo modelos de climatologistas, entre eles o brasileiro Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

"A mensagem é apavorante. A agricultura tem muito a perder e o setor já tinha de se preocupar".

Mamona e girassol, duas culturas que podem alimentar o crescente mercado internacional de biocombustíveis, também perderiam espaço - a área para o girassol no Rio Grande do Sul diminuiria de metade da área do Estado para pequenos pontos isolados.

A cana-de-açúcar, por outro lado, manteria uma taxa constante de produção, apesar de o mapa de plantio mudar: algumas áreas, especialmente a norte, perderiam produtividade, que seria compensada em regiões mais ao sul.

As três conjunturas são baseadas em fontes comprovadamente confiáveis.

Uma é o trabalho de zoneamento agrícola do País, feito pelo mesmo grupo e usado pelo governo federal para gestão e por bancos para liberar financiamento de projetos para o setor.

A outra fonte é o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), principal órgão mundial que estuda o impacto do aquecimento.

O IPCC, em seu último relatório, divulgado em 2001, calcula que a Terra vai esquentar de 1,4°C a 5,8°C, em média, nos próximos cem anos por causa do agravamento do efeito estufa.

Plantas são muito sensíveis a variações de temperatura. Outro agravante é que o novo relatório, a ser divulgado no ano que vem, coloca o tempo de mudanças mais próximo: 1°C a mais em 15 anos.

Pinto diz que começou o trabalho cético sobre a urgência do problema. Em teoria, um aumento da concentração de gás carbônico (CO2) na atmosfera é benéfico para a planta, uma vez que é parte da fotossíntese.

Acontece que CO2 demais no ar significa efeito estufa, que aquece o planeta a níveis mal recebidos pela mesma planta. A flor do café, por exemplo, aborta quando está quente demais e não produz grão.

A cana floresce e "seca", o que inviabiliza sua conversão. Quem planta milho, mais resistente ao calor, pode se beneficiar com 1°C a 3°C a mais, pois vai colher antes. Só que este é o teto - mais é perder dinheiro.

"Não acreditava que as mudanças climáticas estavam tão próximas, mas todos os indícios são positivos. O problema é realmente sério", diz Pinto. Algumas variações já são sentidas.

Nos últimos 60 anos, a temperatura mínima média em diversas cidades brasileiras só aumentou, mesmo em locais remotos.

Incorporação

O governo, contudo, não parece ter se sensibilizado. "Esses são estudos iniciais, muito incipientes.São um alerta, mas não que se tenha de tomar uma decisão neste momento", diz Ronir Carneiro, que trabalha na coordenação do zoneamento agrícola dentro do Ministério da Agricultura.

Mesmo que inserido na pauta agrária, não há políticas públicas para o setor que contem com ações de adaptação e mitigação.

"O zoneamento agrícola usa uma série histórica pela observação, não incorpora projeções", diz o secretário de Políticas Públicas do ministério, Edílson Guimarães.

Para Eduardo Assad, da Embrapa, co-autor do estudo, o tema não foi incorporado apesar da gravidade dos cenários. "Não pensamos mais se a temperatura vai ou não subir 1°C. Queremos saber agora é quando atingiremos 3°C a mais".

A solução, dizem os autores, é a pesquisa e o desenvolvimento de variedades geneticamente modificadas adaptadas às novas condições climáticas.

Assad acha que a biodiversidade brasileira pode conter a resposta, pois há espécies no País adaptadas ao calor. "Deve haver um gene aí que possa ser trabalhado em variedades novas", diz.

Algumas empresas nacionais já buscam alternativas para a cana. Para que o trabalho seja ampliado, faltaria verba.

"Não vejo outro jeito. Temos coordenação, capacidade instalada e base de especialistas. Mas, desde a ditadura, falta sensibilidade para o investimento em ciência e tecnologia".

Estamos no pior cenário em 650 mil anos, mostra estudo

Dados preliminares mostram a maior concentração de gases do efeito estufa

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que reúne milhares de especialistas do mundo, prepara um novo relatório sobre o tema para o próximo ano, o quarto de sua história.

A expectativa é que o cenário proposto pelo grupo seja ainda mais cinzento e quente do que o último, lançado em 2001.

Recentemente uma cópia preliminar do documento vazou quando um comitê do Senado americano a tornou disponível na internet.

Ela traz sinais inequívocos de que a humanidade enfrentará tempos difíceis nas próximas décadas, e que evitá-los pede ações imediatas de adaptação e mitigação tomadas por todos os países.

Ela diminui o grau de incerteza da variação de temperatura média global. Também diz que a mudança acontecerá antes do que era previsto.

As concentrações de dióxido de carbono, metano e outros gases do efeito estufa são as mais altas em pelo menos 650 mil anos.

E a causa é indubitavelmente a ação humana, que alterou paisagens e aumentou a taxa destas substâncias na atmosfera a partir da Revolução Industrial, que promoveu a queima de combustíveis fósseis como o petróleo.

Então, se antes o painel falava em um acréscimo de 1,4°C a 5,8°C até 2100, agora indica uma variação mais estreita, entre 2°C e 4,5°C.

Só que todas as mudanças são previstas num prazo mais curto: 1°C a mais em 15, não 20 anos; 3°C em 25, não 40 anos; e 5,8°C em 60, não 90 anos. "Ter 1°C a mais é realidade para 2015", diz o pesquisador Eduardo Assad, da Embrapa Informática.

Em 100 anos, se não houver controle, o aumento poderia chegar a absurdos 9°C extras, afirma o meteorologista Hilton Silveira Pinto, da Unicamp, que tem acesso ao documento. "As previsões anteriores do IPCC, feitas no terceiro relatório, estão totalmente superadas".

Eventos climáticos extremos, como furacões, secas e ondas de calor, vão se tornar mais freqüentes e recordes continuarão a ser batidos - até agora, cinco dos seis dos anos mais quentes já registrados aconteceram entre 2001 e 2005, com picos em 1998 e 2005.

O nível dos oceanos poderia subir entre 14 e 43 centímetros até o fim do século, e o aumento para os 200 anos seguintes seria o dobro disso por causa do derretimento de geleiras continentais e polares.

Nesta semana, pesquisadores da Nasa demonstraram que o Ártico perdeu 700 mil quilômetros quadrados de gelo só entre 2004 e 2005, um encolhimento de 14% em relação ao período anterior. Nos outros anos, a taxa era de 0,7%.

A alteração dos resultados deve-se a dados mais robustos, produzidos desde então por cientistas de todo o mundo.

Os modelos climáticos, que projetam as tendências de acordo com variáveis como concentração de gás carbônico, foram refinados desde o último relatório do IPCC.

Um exemplo do detalhamento é que há mais chance de que a temperatura suba 2,9C - há 5% de probabilidade de o valor ser menor do que 4,5°C.

Segundo Pinto, apesar de os fatos indicarem com mais clareza o que acontece com o planeta, há perguntas cruciais que ainda não foram plenamente respondidas pelo painel: as alterações fazem parte de um processo natural, agravado pela ação humana?

Qual é a durabilidade deste efeito, depois que ações de controle das emissões se tornarem efetivas? Quando começa a próxima era glacial? São estes os desafios do grupo para o quinto relatório.

Inércia

Boa parte das alterações acontecerá de qualquer jeito por causa da quantidade atual de gases do efeito estufa na atmosfera, especialmente aquelas de curto prazo, mesmo que diretrizes restritivas aplicadas à produção e à emissão dos gases do efeito estufa fossem implantadas imediatamente.

O Protocolo de Kyoto, acordo global para atacar o problema, é sabidamente um primeiro e tímido passo, com metas muito aquém do necessário para resolver a questão.

O principal emissor do mundo, os Estados Unidos, não participa do esforço. Debates sobre medidas mais rígidas caminham num ritmo mais lento do que o processo de aquecimento global.

Em novembro, os membros da Convenção do Clima das Nações Unidas se reúnem em Nairóbi (Quênia) para debater o futuro do planeta.

O quarto relatório, apesar de não publicado, fará certamente parte das negociações internacionais.


Data: 18/09/2006