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Da valorização da liberdade à valorização da saúde

Alain Giami, do Instituto Nacional de Saúde e da Pesquisa Médica (Inserm), da França, analisa a medicalização da saúde, em entrevista à 'Agência Fapesp'

Com o surgimento de novas drogas, como o Viagra, e das chamadas tecnologias reprodutivas, a saúde das populações, especialmente a saúde sexual, conforme definida pela Organização Mundial da Saúde, tem se tornado cada vez mais medicalizada.

A observação é do psicossociólogo Alain Giami, do Instituto Nacional de Saúde e da Pesquisa Médica (Inserm), da França. "Desde que a saúde virou o valor supremo das culturas, os comportamentos individuais ficaram muito mais medicalizados", diz.

Segundo Giami, essa medicalização pode ser definida como um processo de modificação e "regulação" comportamental, que se dá na vida cotidiana dos indivíduos, justificado pelo próprio conceito do "fazer bem à saúde".

Em entrevista à 'Agência Fapesp', o pesquisador francês, que ficará no Brasil até novembro como pesquisador visitante do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do RJ (Uerj), fala das formas pelas quais a medicalização se manifesta cotidianamente e de como o mundo passou "da valorização da liberdade para a valorização da saúde".

Como pode ser definido o processo de medicalização da saúde?
Alain Giami - Como um processo de modificação e de "regulação" comportamental, que se dá na vida cotidiana dos indivíduos e é justificado pelo próprio conceito de saúde, desde que esse se tornou o valor maior das sociedades contemporâneas. Mas a medicalização em geral não é simplesmente o recurso da medicina para tratar de doenças. O processo não ocorre somente no âmbito da medicina e dos remédios. É uma maneira de pensar e de perceber coisas de um modo médico, que se dá, por exemplo, quando alguém deixa de comer açúcar, ou de fumar, porque faz mal à saúde.

Mas isso não é bom?
Giami - Em minha análise não procuro saber se esse processo é bom ou ruim. Minha crítica é que o discurso da saúde tende apenas a modificar comportamentos individuais. Até meados do século 19, a liberdade, despontada na Revolução Francesa do século anterior, era o valor maior da humanidade, e não a saúde. Hoje em dia, essa idéia de liberdade é criticada. Criaram-se limites à liberdade humana por causa da saúde.

De que maneiras o processo de medicalização se manifesta na atualidade?
Giami - Ele se dá de muitas formas, seja por meio do surgimento de drogas como o Viagra, da prevenção da Aids, das tecnologias reprodutivas e da contracepção que, apesar de ter surgido na década de 1960, ainda não está completamente divulgada nas sociedades. Ao contrário do que muitos pensam, a pílula anticoncepcional não foi pensada para facilitar a liberdade sexual. Ela foi criada para controlar a fertilidade dos povos.

O sr. cita a prevenção da Aids como uma das formas da medicalização. Qual o papel da Aids nesse processo?
Giami - A Aids pode ser pensada como uma forma de medicalização, não no nível químico, mas no nível da saúde coletiva, para reorganizar os comportamentos. O advento da Aids é complementar ao da pílula anticoncepcional, que também foi criada para reorganizar a vida sexual e controlar a fertilidade. As respostas públicas frente à epidemia da Aids também foram dadas no sentido de reorganizar a vida sexual e de proteger as pessoas da infecção. A chegada da Aids trouxe de volta o uso do preservativo, não como contraceptivo, como era no passado, mas como forma de proteção e de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis.

Como o sr. analisa o fenômeno do Viagra?
Giami - Ele surgiu em 1998, saído de uma década marcada pela referência permanente entre sexo e Aids, entre sexo e doença. Tudo isso teria que ser diminuído, controlado e protegido. Nesse contexto, o Viagra veio a favorecer a emergência de uma nova representação da sexualidade, que é a sexualidade heterossexual, do casal e das pessoas com mais de 50 anos. É a volta de um discurso mais otimista sobre a sexualidade, de que sexo é bom e tem que ser amplificado. No caso da Aids, a ideologia era de cuidado e prevenção. Com o Viagra, o sexo passa a ser novamente visto como algo benéfico para a saúde e para o bem-estar. A atividade sexual vem como a categoria central da questão do bem-estar no âmbito da saúde sexual, levando em conta o conceito de saúde proposto pela Organização Mundial da Saúde, definida como um estado de bem-estar completo, em nível físico, psicológico e social. Mas o maior impacto foi mesmo o reconhecimento de que sexo é bom para a saúde, como ocorreu nos anos 60.

Em sua última visita ao Brasil, o sr. criticou o fato de haver um maior investimento, por parte das indústrias farmacêuticas, para o desenvolvimento de drogas como o Viagra do que para a Aids.
Giami - A indústria farmacêutica precisa da medicina para legitimar as drogas que produz. Ocorre que a indústria investe pouco no tratamento da Aids. Já no campo do tratamento da disfunção erétil, muito dinheiro está disponível. A lógica industrial e comercial não é a mesma lógica da medicina. Não são as necessidades das populações que vão orientar o desenvolvimento de remédios. Mas é necessário relativizar essa questão das necessidades das populações. Drogas para a Aids podem diminuir a mortalidade. Por outro lado, as direcionadas para disfunções sexuais vão melhorar a qualidade de vida. Não diria que uma é mais importante do que a outra. O que observo é que muito pouco dinheiro está sendo investido nas drogas para o tratamento da Aids, enquanto muito é revertido no desenvolvimento de drogas para as disfunções sexuais, pois, nesse caso, as indústrias podem lucrar muito mais.


Data: 18/09/2006