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Fomentar. Inventar. Inovar. Desafio em três tempos

Refém de protecionismos, o Brasil perde a chance de regular o que importa e defender suas vocações científicas e tecnológicas

Estado, universidades e empresas. Para os quatro convidados do 6.º Aliás Debate, estas são as três peças centrais de um intrincado jogo no campo do desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro.

O último debate da série, que durou cerca de 3 horas, levantou questões polêmicas como a falta de incentivos para que o setor privado invista em inovação, a difícil relação entre tecnologia e meio-ambiente e a precariedade na formação de cientistas. Acompanhe os melhores momentos da discussão:

- Grande parte da inovação é produzida fora do Brasil por empresas que estão no País e não têm interesse em realizar pesquisas aqui, onde têm apenas filiais absorvedoras da inovação das matrizes. Como é possível mudar essa situação?

Brito Cruz - A "avalanche tecnológica", citada pelo Laymert, cria nas empresas cujas sedes estão nos países centrais a necessidade de usarem recursos que há em países como o Brasil. Elas têm uma necessidade tão grande de ter mais pessoas criativas que nem mesmo países que com um sistema universitário poderoso, como os Estados Unidos e certos lugares da Europa, conseguem preencher suas demandas. A mesma consideração que o Sílvio Meira fez aqui sobre 'formar mais e melhor' eu ouvi há alguns meses do Bill Gates, referindo-se à ciência da computação nos Estados Unidos. Sim, faltam cientistas da computação e falta qualidade. Isso faz com que se crie um movimento centrífugo de atividades de pesquisa e desenvolvimento em grandes empresas multinacionais. Fato interessante é que o Brasil, hoje, é um endereço relevante dessa descentralização. Levantamento feito pela revista The Economist, há cerca de um ano, consultou em um milhar de empresas multinacionais qual seria o endereço principal para onde elas gostariam de levar atividades de pesquisa e desenvolvimento. O Brasil ficou em sexto lugar. Em primeiro lugar tinha, obviamente, a China. Em segundo, os Estados Unidos. Em terceiro, quarto e quinto lugares, não me lembro da ordem, mas eram a Índia, a Inglaterra e a França, e depois o Brasil. Tem aí uma oportunidade que o Brasil pode saber usar ou não.

- E é possível identificar essas oportunidades?

Brito Cruz - É possível. Há certamente oportunidades relevantes na área de tecnologia da informação, em assuntos relacionados a serviços de engenharia e em assuntos de telecomunicações e parece surgir com alguma intensidade uma chance no mundo farmacêutico. Algumas dessas oportunidades aparecem e outras são construídas.

Reinach - Mas um dos problemas que está acontecendo, principalmente nos Estados Unidos, e que gera essa falta de pessoas, é detectado na maior parte dos cursos de pós-graduação das universidades de elite: a formação em ciência não está mais atraindo os melhores alunos, os melhores cérebros. Isto é um fenômeno. No meio do século 20, os melhores cérebros iam fazer pesquisa nos Estados Unidos, iam ser engenheiros, etc. Hoje, os melhores cérebros estão indo para o mercado financeiro. E os cursos de pós-graduação nos Estados Unidos estão sendo invadidos por imigrantes chineses, coreanos, latino-americanos, vietnamitas, etc. Há países que, ao perceberem isso, criaram uma cultura onde se valoriza muito essas pessoas. E o que acontece no Brasil? Por aqui, eu vejo o oposto. A gente está com uma mentalidade parecida com a americana: as melhores mentes já não querem mais a ciência.

- Falou-se muito no etanol como uma oportunidade de o Brasil criar uma tecnologia importante, relevante não só para o País, mas também para o exterior. Por que será tão importante o Brasil ter etanol?

Reinach - O desenvolvimento do etanol no Brasil começou na crise do petróleo de 70 e o modelo pegou. Durante anos, tivemos somente dois tipos de carro: um a etanol e outro a gasolina. Isso criava uma escravidão do governo em relação aos produtores de etanol. Mas há uns cinco ou seis anos surgiram os carros flex fuel. A combinação de um país que produz etanol e tem carro flex fuel é o segredo do Brasil, porque não é preciso mais ser escravo da indústria de etanol. Essa receita foi descoberta pelo mundo como uma grande solução. Os Estados Unidos estão se mexendo muito rápido. Este ano já produziram mais etanol do que o Brasil. Com uma tecnologia péssima, que custa três vezes mais, mas eles estão investindo de maneira violenta. E no Brasil? É um caos total, não há liderança. Os investimentos ficam bloqueados, ninguém consegue desenvolver nada, porque é uma burocracia danada. Se nada mudar, daqui a 5 ou 10 anos, teremos a síndrome de Santos Dumont de que o Brito falou. Vamos ter dado uma bela idéia ao mundo, vai faltar etanol no Brasil e nós acabaremos importando etanol.

Meira - O que faltam aqui são as condições para um capitalismo realmente empreendedor. Na informática, que é a minha área, a maioria das inovações dos últimos 15 anos não surgiu dos laboratórios universitários, mas foi feita pelo capital de empresas empreendedoras. O capital empreendedor como habilitador dos resultados de ciência e tecnologia na forma de inovação é a pedra de toque no Brasil. E este país é completamente xenófobo e estatal. A tecnologia do carro flex fuel é patenteada pela Robert Bosch do Brasil, cuja matriz é alemã, e ganha muito dinheiro com isso.

Brito Cruz - A tecnologia flex fuel foi desenvolvida no Brasil, por engenheiros brasileiros, nos centros de pesquisas de empresas como a Bosch, a Magneti Marelli, a Delphi, a Ford, a Fiat, etc. Uma boa parte das patentes é, portanto, brasileira. E as filiais fizeram isso contra a estratégia da matriz, que não estava valorizando o assunto. Essas inovações criam oportunidades para o País.

Laymert - No caso do etanol, nós estamos reivindicando uma invenção que não é nossa. Foi desenvolvida aqui, mas, no livro Critical Path (Caminho Crítico), do grande inventor americano R. Buckminster Fuller, ele conta como o governo americano na década de 40 pediu que ele fizesse um plano de desenvolvimento de etanol como energia alternativa no Brasil. O projeto foi vendido ao governo brasileiro, colocado na gaveta por anos e só muito depois começou efetivamente a acontecer. A idéia não era nossa. A implementação e a inovação, sim.

- Na questão energética, fala-se muito em etanol, mas existem outras fontes alternativas, como a eólica e a solar. O Brasil deve parar de caminhar nessas outras vertentes?

Brito Cruz - Há outras oportunidades em energia que podem ser interessantes para o Brasil. Mas, do ponto de vista da competitividade mundial, não tem nenhuma que se compare ao etanol. Dois elementos definem isso: o custo do kilowatt-hora gerado e o custo energético, que é a energia gasta no processo da geração de energia. O desafio é produzir mais energia do que o combustível fóssil gasto no processo produziria. Com a cana, é gerada quase 90% a mais energia do que a energia fóssil consumida. Já com o milho americano o índice é de apenas 10%. O etanol tem essas duas vantagens importantes.

- Como está a questão legislativa no campo da ciência e tecnologia?

Brito Cruz - Os obstáculos do ponto de vista jurídico já não são tão grandes quanto já foram. Entretanto, o governo demora a responder, porque, quando a legislação é feita, ela tem que ser regulamentada. A lei da inovação, que foi publicada em 2004, falava de fazer subvenção à atividade de pesquisa em empresas. O primeiro edital sobre subvenção saiu dia 6 de setembro, quase 2 anos depois.

- Há um desapreço do capital brasileiro por inovação? Por quê? E como é possível sair dessa armadilha? É via legislação, ou via um programa nacional de incentivo?

Meira - O capital, dado um espaço qualquer, flui por onde ele é constrangido. Eu ouvi num debate do Conselho da Finep o Antonio Paes de Carvalho, cientista renomado no Brasil, principal acionista da Extracta, numa discussão em que o atual ministro Sérgio Rezende estava anunciando, na época como presidente da Finep, que a instituição ia emprestar dinheiro às empresas a juro zero acima da TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo) para promover a inovação. O Paes de Carvalho disse: 'É muito pouco e muito tarde. Empresas como a minha nos Estados Unidos recebem há mais de 30 anos dinheiro a fundo perdido do erário americano, mesmo sendo brasileiras'. É preciso ter uma política de longo prazo e entender o desafio da competitividade do seu capital, do que o seu capital pode fazer pelo país. No Brasil, as legislações às quais o Brito se referiu são alguns passos na direção correta, mas elas estão pegando muito devagar. Outros países estão andando muito mais rápido.

Reinach - A questão é: nós estamos progredindo mais rápido ou mais devagar que outros países? Progresso mais lento não é progresso. O Mario Covas disse há um tempo que o Brasil precisava de um choque de capitalismo e eu concordo. Criar uma empresa, gerar emprego e ter sucesso não é visto pela maioria dos brasileiros como uma geração de riqueza para o país, é visto somente como uma geração de riqueza para o dono da empresa. O governo também pensa assim e cerceia a inovação no setor privado.

- A intervenção do Estado atrapalha o desenvolvimento da ciência?

Brito Cruz - O Estado não pode ser um obstáculo, mas isto não quer dizer que o Estado não deva fazer nada. Em três dos exemplos brasileiros bem-sucedidos no mundo da inovação, a ação do Estado brasileiro foi muito importante. O Brasil tem a Embraer porque o Estado brasileiro resolveu criar uma indústria de aviação no Brasil. Em 1947, alguém no governo federal, ou alguém na Força Aérea, considerou que seria bom o Brasil ter uma indústria de aviação. Qual foi a estratégia? Fazer uma escola que formasse engenheiros que soubessem fazer avião. Fizeram o ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), o CTA (Centro Técnico Aeroespacial), formaram engenheiros por anos e anos, até que, em 1967, criou-se a Embraer. No caso do etanol, foi o Estado brasileiro que em 1975 decidiu usá-lo. A Petrobrás é uma empresa estatal que tornou-se capaz de fazer a extração de petróleo em águas profundas. Agora, de uns anos para cá, porém, o Estado brasileiro parece ter perdido a capacidade de fomentar o desenvolvimento e passou a se colocar como obstáculo.

Meira - Grandes desafios não serão tocados por uma empresa. Por maior que seja o fundo do Grupo Votorantim, ele não vai conseguir tocar um grande desafio nacional, mesmo porque não há mais grandes desafios nacionais. Há grandes desafios, ponto. O desafio é mundial. No negócio do petróleo, pode ser que a Petrobrás acabe não indo para o Golfo do México porque a Petrobrás é Estado. O Estado não tem a velocidade e a capacidade de tomada de decisão de negócios que as empresas têm. Nos outros desafios, o que o Estado está fazendo e que indústria vai gerar? Ou será que nós vamos consumir todos os resultados da indústria internacional que está sendo gerada agora? Basta lembrar que os Estados Unidos estão se lançando no desafio da inteligência. Tanto o Estado, que decretou o ano 2000 como o ano federal do cérebro, com várias iniciativas de pesquisa sobre o assunto, até a Fundação Howard Hughes, que destinou US$ 500 milhões num único centro para estudar o cérebro e a inteligência. As conseqüências disso serão no muito longo prazo.

Reinach - O Estado tem a seguinte visão: 'Se eu fizer algo que gere riqueza, tudo bem. Mas eu não topo criar condições para o setor privado inovar e gerar riquezas'. É uma coisa super totalitária.

Laymert, no caso da biodiversidade, considerando que o Brasil tem a maior floresta tropical úmida e a maior biodiversidade do mundo, faz sentido o Estado não estar presente nesta questão?

Laymert - O fato de você ter acesso à tecnologia como consumidor não é o mesmo de você ter acesso à tecnologia como inventor e inovador. É a diferença entre invenção, em que a universidade tem o papel de fazer, e inovação, que a empresa tem que fazer. O Brasil é número um em megadiversidade. A questão da relação biotecnologia-biodiversidade já está colocada desde os anos 80, porque os países centrais não têm biodiversidade e todo mundo já sabe que a próxima revolução é a biotecnológica. E nós não nos preparamos para isso. Durante muito tempo a da relação biotecnologia-biodiversidade foi uma não questão. O acesso à tecnologia foi regulamentado a partir dos anos 80 em termos de propriedade intelectual, mas o acesso aos recursos genéticos não foi regulamentado e até hoje continua rodando no Congresso um projeto de lei que nunca é aprovado.

Reinach - Quando comecei a trabalhar na Votorantim, queria investir em biotecnologia e biodiversidade. Na biotecnologia, achava que o risco regulatório era relativamente baixo. Porém, estamos encalacrados com a lei de biossegurança e está tudo parado. Na biodiversidade, fomos espertos o suficiente para perceber que não havia lei e não investimos. Um pesquisador do Butantã, que põe dois bichinhos em um vidrinho e coloca no correio é preso por fiscais do Ibama na Amazônia como se, com isso, a floresta estivesse sendo preservada. Por que essa visão tão atrasada sobre a exploração da biodiversidade? Porque, no Brasil, toda a área de meio-ambiente foi formada sem base científica. Ela veio dos movimentos sociais, das ONGs, dos ativistas, com a ausência de cientistas. Ainda existe uma ilusão de que a biodiversidade é brasileira. Pois o sapinho que está perto da floresta com a Venezuela não sabe que é brasileiro, e cruza com a sapinha do outro lado da fronteira. Se os países à nossa volta abrirem a exploração da biodiversidade em seus territórios, o valor da nossa biodiversidade vai a zero. A riqueza sem pesquisa é virtual.

Meira - A biodiversidade, na prática, não vale nada. O que vale é o conhecimento prático e industrial sobre a biodiversidade. Nós temos 200 tipos diferentes de sapos. E daí?

- Como fica o Brasil, em termos de competição tecnológica e de formação de ilhas de excelência, nesse novo cenário mundial, em que os países emergentes e os do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) entram na disputa por mercados internos e externos com grande voracidade?

Meira - Nós estamos falando dos RIC, na realidade e, cada vez mais, o termo é mencionado ao contrário: China, Índia, Rússia. O Brasil ficou para trás. Na área de computação, a China e a Índia gozam do privilégio de uma diáspora em escala mundial. Talvez a Índia perca para a China nas áreas de biologia e pesquisa médica avançada. O que esses países têm feito é atrair aquela deslocalização da capacidade de inovação das grandes empresas para os seus territórios, dando empregos nacionais chineses e indianos, em larga escala. O laboratório mais inovador da Microsoft não fica em Redmond (sede da empresa), mas em Beijing. A China não vê problema nenhum em pagar para pesquisadores chineses um salário parecido com o que eles ganhariam nos Estados Unidos. A Índia hospeda grandes centros, como o Centro Global de Inovação da General Electric. Ele fica em Bangalore, emprega milhares de engenheiros, pesquisadores e técnicos. No Recife, temos uma operação chamada Porto Digital, que é a criação de um parque tecnológico urbano, em uma região que estava meio degradada, no centro da cidade. O único incentivo prático, de governo, que as empresas têm para ir para esse lugar é o fato de o governo estadual ter feito um investimento na criação de uma estrutura mínima, e a isenção de 60% do ISS, dada pela prefeitura da cidade. Em Hyderabad, na Índia, se a empresa garantir que vai ficar no país mais de 5 anos, empregando pelo menos 200 pessoas, e se os produtos são para exportação, ela recebe incentivos que vão desde o prédio onde vai se instalar, a 100% de abatimentos de todos os impostos!

Brito Cruz - Mas na China e na Índia, eles também têm dificuldades. Imaginem fazer um processo sobre propriedade intelectual na China? Além disso, com relação à solidez das instituições políticas, o Brasil tem vantagens incomparáveis. Temos uma democracia estabelecida. Na China, ninguém sabe o que vai acontecer do ponto de vista político. Como vai ser a China no dia em que houver suficiente liberdade para uma organização de sindicatos?

Reinach - E se eles pularem essa coisa chamada sindicato?

Brito Cruz - Nenhum país do mundo pulou. Num certo ponto, uma parte da classe média vai querer liberdade, como já estão querendo hoje, ter acesso ao Google e ver todas as palavras de busca que desejam, sem controle do governo. Tem um problema ali sobre liberdade que é importante, não só para o ser humano, mas para a empresa se desenvolver. Essa é uma lição de casa que o Brasil fez ao longo dos últimos 40 anos. Há uma possível exceção da Índia, que tem uma democracia razoavelmente estabelecida, mas que tem um problema de desigualdade bem pior que o do Brasil.

Laymert - Democracia política e não é sinônimo de democracia social e econômica. A questão é termos possibilidade de escolher ter estratégia ou não. A China descobriu que não tinha água suficiente para desenvolver a agricultura e, ao mesmo tempo, a indústria. Então, ela fez uma opção. A importação de soja do Brasil significa, na verdade, importação de água. A China está fazendo uma opção de longo prazo. Nós fazemos esse tipo de opção? Não.

- Os baixos salários brasileiros ainda fazem diferença na atração de investimentos?

Reinach - No Brasil, havia uma crença de que tudo acontecia aqui porque os salários eram mais baixos, porque a mão-de-obra é barata. Agora, outros países oferecem mão-de-obra muito mais barata. Tive uma experiência recente com uma empresa de biotecnologia que queria terceirizar serviços para serem feitos no Brasil. Fazendo uma conta, o custo total da operação no Brasil é só 10% menor do que na Alemanha, apesar das pessoas ganharem mais lá. Por quê? Aqui o salário é de 10, mas o funcionário custa 19 para o empregador. Desses 10, o funcionário paga 27% de imposto de renda. Você custa 19 e põe no bolso sete. Essa é a realidade brasileira. Estamos com custos de cientistas quase de primeiro mundo. Enfim, estamos meio no pior dos mundos, nessa parte.

- Sobre célula-tronco: como fica o cenário das pesquisas nesse domínio da biotecnologia, principalmente diante dos entraves éticos e morais? Comentem também as dificuldades que houve internamente na CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança).

Reinach - As células-tronco são um exemplo recente de uma coisa muito antiga na ciência. Sempre existiu uma competição entre lugares onde se podia fazer certos experimentos e onde não podia. Por exemplo, sociedades em que o corpo, mesmo depois da morte, era sagrado não permitiam dissecação. Nesses lugares, a medicina levou muito tempo para progredir. No fim, ela progrediu nos lugares onde, legal ou ilegalmente, era permitido abrir, cortar o corpo. O que estamos vivendo hoje é o mesmo tipo de problema. Algumas sociedades não permitem que certas pesquisas ocorram, como as células-tronco nos Estados Unidos. Mas, em Taiwan, nas Filipinas e em outros países, a percepção da religião em relação a isso é mais relaxada. Aconteceu o mesmo com as plantas transgênicas. Elas foram descobertas na Bélgica. Todos os laboratórios de primeira linha das multinacionais eram na Europa. Quando a Europa começou a bloquear os transgênicos, todos foram para os Estados Unidos, onde isso era permitido. O movimento contrário acontece agora com as células-tronco. No Brasil, temos o mesmo problema, não só com os transgênicos, mas com toda a tecnologia agrícola. A tecnologia é a melhor amiga da preservação da floresta, porque ela tira a pressão econômica sobre o desmatamento. Aqui no Brasil, por causa da pouca educação científica mesmo, essa relação não é nem compreendida.

Meira - Se houver qualquer coisa no planeta que tenha a possibilidade de representar algum desenvolvimento, que possa ser interpretado como bom por um conjunto de pessoas capazes de financiá-lo e, eventualmente consumi-lo, esse desenvolvimento será feito, independentemente de questões morais. Eu tenho acompanhado o desenvolvimento das retinas artificiais. Hoje, é possível ter uma retina artificial com definição de 1 milhão de pontos, resolução bem pior do que a de uma tela de computador normal. Mas meu chute é que, em 2025, vai haver uma retina artificial melhor do que um olho humano, do ponto de vista de resolução. Se é possível criar uma retina artificial, eventualmente, combinando silício com carbono ou algo assim, faz-se um olho completo e arranja-se uma forma de colá-lo no nervo óptico. Pois isso vai acontecer até 2075, na pior das hipóteses. Existindo esse olho, eu que tenho 14 graus de miopia, vou botar um desses. E quem tem 2 graus de miopia vai continuar usando óculos. Eu vou ter um olho, absolutamente novo, feito pela Johnson & Johnson ou por qualquer outra empresa, que tem uma resolução muito melhor do que os demais. A minha pergunta para quando esse negócio estiver no mercado é a seguinte: você vai querer o seu olho com zoom ou sem zoom? E quantas pessoas vão tirar seus olhos absolutamente normais para botar um desses que tem zoom, infra-vermelho e bate fotos? Vamos então radicalizar: se você tiver um olho que tem silício dentro dele, por que não o transformar num celular também? O olho bate fotos e armazena num site. Com um pouco de inteligência artificial, para as pessoas que têm dificuldade de memória visual e coisas como essas, o olho capta a imagem, processa e diz: esse é o Fulano, você o viu num debate do jornal O Estado de S.Paulo, ou no metrô, no aeroporto, etc. Por que não fazer isso? A pergunta é: por que não? Mas alguém pode dizer que isso é desumano, é eticamente condenável. E daí? Se for factível e se grupos entendem que disso deriva algum benefício para a espécie humana, isso vai ser feito.

- Há um atrito entre universidades e empresas? E qual a natureza desse embate?

Brito Cruz - Quando se fala em ciência, é normal e razoável pensar logo em universidade, mas quando se fala de inovação tem de se pensar em empresa. Muito raramente inovação nasce na universidade. Quando o William Hewlett e o David Packard decidiram criar a HP, vários professores em Stanford reclamaram amargamente porque certas pessoas iam ganhar dinheiro fabricando produtos que haviam sido descobertos com o dinheiro do contribuinte. Esse tipo de dificuldade não existe só aqui no Brasil, existe no mundo inteiro, faz parte da sociedade democrática. Se as pessoas nas universidades se preocupam com a idéia de que se ganhe muito dinheiro com idéias geradas em seus corredores, é preciso perceber que há uma razão para esse pensamento e não é meramente inveja. A universidade não tem que ser um obstáculo, mas ela precisa debater esses temas do ponto de vista do avanço acadêmico. Se a universidade fizer somente aquilo que o mercado pede, ela perderá seu propósito, que é fazer boa educação. E para fazer boa educação ela precisa explorar fronteiras do conhecimento em tudo: na literatura, na filosofia, na química, na física, na matemática.

- A formação no Brasil é precária e poucas pessoas chegam à universidade. Como mudar isso? E o que se pode fazer, concretamente, para melhorar esse relacionamento entre campo acadêmico e mercado?

Meira - Voltarei para a frase do Bill Gates: a formação é precária em qualquer lugar do mundo. Os Estados Unidos e uma parte da Europa resolveram o problema de capital humano definindo níveis de formação de pessoas. Nem toda a universidade nos Estados Unidos é como a MIT. Eu atacaria o problema de formação como eles atacaram lá. Um número percentual muito grande da sociedade deveria passar por um ensino superior de qualidade mínima, até para que se instrumentasse esses debates, para que as pessoas soubessem o que está sendo discutido. Mesmo hoje, um subconjunto de centros brasileiros em quase todas as áreas do conhecimento é de alto nível. A partir desses centros é que se criam oportunidades para que se desenvolvam projetos, empresas, produtos e processos também de classe mundial. Na China, não se pode dizer que a Manchúria é uma região de altíssimo desenvolvimento tecnológico. A Coréia tem apenas 12 parques tecnológicos; a diferença é que o governo resolveu investir US$ 1 bilhão em cada um. Do ponto de vista de como articular melhor academia e mercado, voltarei ao meu mantra sobre o papel do Estado: 1) formar mais gente de melhor qualidade; 2) criar as oportunidades para que esse povo se desenvolva e 3) sair da frente.

Brito Cruz - A maior restrição na relação entre universidade e empresa, hoje, no Brasil, é a pequena intensidade de atividades de pesquisas que acontecem nas empresas. Há 20 anos, eu diria que a restrição à maior relação entre a universidade e a empresa no Brasil, estava mais na universidade do que na empresa, porque a universidade tinha má vontade. Mas, nestes últimos 20 anos, a má vontade praticamente desapareceu e se converteu, em certos momentos, em boa vontade demais. Algumas universidades começam a fazer coisas que as boas universidades do mundo não fariam para conseguir uma boa relação com as empresas. Quanto à questão da formação, precisamos ter melhor educação fundamental e muito melhor educação média. Em um País em que apenas 40% dos jovens freqüentam o ensino médio, que é péssimo, não se tem nível educacional para debater assuntos como células-tronco, biodiversidade, etc. A discussão fica presa ao obscurantismo. Experimente pegar um livro de algum filho de vocês do ensino médio sobre biologia. Está tudo lá, tem lições sobre células-tronco, receptor da dor, célula CD-4, biodiversidade, tem a Amazônia e os afluentes do rio Amazonas.

Reinach - A avalanche tecnológica, que o Laymert mencionou, ela tem uma conseqüência que afeta muito a maneira como as pessoas têm que ser educadas. Na década de 50 do século passado, um médico estudava 5 anos e aprendia supostamente 100 coisas. Durante os 40 anos em que ele praticava a profissão, dessas 100 coisas, 30% se deterioravam. Com a velocidade estonteante de hoje, na maioria das formações universitárias, uma parte enorme do que se aprende agora vai ser perdido nos primeiros anos da sua vida profissional. É a obsolescência muito rápida. O conhecimento, a informação em si, tem de ser menos valorizada e a capacidade de acompanhar e entender as mudanças que estão ocorrendo tem de ser muito mais enfatizadas. É preciso formar o aluno para que ele entenda o que estará acontecendo nos próximos anos.

Laymert - Seria necessário que a universidade discutisse muito mais o que é cibernetização do conhecimento, fundamental na terceira revolução industrial, e como ela incide sobre a própria produção do conhecimento.

Meira - Há uma necessidade de um conjunto de processos para o que poderíamos chamar de just-in-time education ou o conhecimento na hora em que você precisa. Estamos treinando as pessoas nas respostas, acho que precisávamos treinar nas perguntas e na capacidade de fazer as buscas para encontrar os resultados.


Data: 15/09/2006