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Dormir para lembrar, artigo de Suzana Herculano Houzel

"Perca uma noite de sono, e a sensação de exaustão mental no dia seguinte será garantida. Paradoxalmente, no entanto, o cérebro não pára de funcionar durante o sono; ele funciona de modo diferente"

Suzana Herculano Houzel - Neurocientista, professora da UFRJ e autora de "Sexo, Drogas, Rock'n'Roll & Chocolate" e de "O Cérebro Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira & Lent)



Se você ainda é daqueles que acham que passar um terço da vida dormindo é perda de tempo, anote esta: o sono é fundamental para consolidar as memórias do dia. Sem sono, nada feito.

Visto de fora, pode até parecer que o cérebro pare de funcionar durante o sono.

Afinal, a função mais óbvia do sono é "descansar" o cérebro das atividades do dia, mesmo que ainda não se saiba o que isso significa em termos celulares.

Perca uma noite de sono, e a sensação de exaustão mental no dia seguinte será garantida. Paradoxalmente, no entanto, o cérebro não pára de funcionar durante o sono; ele funciona de modo diferente.

Uma das conseqüências recém-descobertas desse funcionamento diferente do cérebro durante o sono é a consolidação da memória, quando as modificações nas conexões cerebrais que começam a ser feitas durante o aprendizado do dia são estabilizadas.

É como se o cérebro passasse o dia fazendo rascunhos em um bloco de notas - o hipocampo - e, à noite, tivesse a oportunidade de passar as anotações a limpo, reescrevendo-as no córtex cerebral, liberado, graças ao sono, das influências de estímulos externos.

Os benefícios de uma noite bem dormida, no entanto, não se aplicam exclusivamente às tarefas do dia.

O simples fato de usar durante o dia uma memória já instalada e consolidada anteriormente faz com que tudo comece de novo: a memória antiga se torna vulnerável a modificações e passa por um novo período de consolidação - para o qual o sono é fundamental.

Pode parecer estranho tornar vulnerável uma memória já bem instalada no cérebro, mas a memória, afinal, não se parece em nada com vídeos que mostram sempre a mesma história cada vez que são tocados: nossas memórias mudam à medida que são usadas.

Graças a essa alteração pelo simples fato de ser usada, o melhor exercício para a memória é usar a memória - e dormir ao fim do dia: como o uso de uma memória fortalece as conexões envolvidas, quanto mais se lembra de uma coisa, mais fácil será lembrar dela no futuro.

O terço adormecido da vida, portanto, é nossa possibilidade de rever constantemente os acontecimentos e as lembranças do dia.

Entre outras coisas, é essa capacidade de aprender-e-consolidar-e-mudar-e-consolidar-de-novo que nos permite aprimorar e reescrever continuamente nossa história.

O cérebro faz anotações, passa-as a limpo, mas sempre a lápis -o que garante muitas oportunidades para refazer o traço ao longo da vida.


Data: 14/09/2006