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Íntegra da entrevista do presidente da SBPC a O Estado de SP

Ennio Candotti (foto) respondeu às perguntas da repórter Luciana Nunes Leal em15 e 20 de agosto. A entrevista foi parcialmente publicada nesta segunda-feira, 4 de setembro

Leia a íntegra da entrevista

- O sr. disse ao presidente Lula que os bancos deveriam destinar 10% dos lucros para investimentos em ciências nas escolas. Seria possível criar uma Oficina de Ciência para cada dez escolas. E que os bancos não ficariam mais tristes se ti-vessem um lucro 10% menor. O sr. acha abusivo os lucros dos bancos?

Acho, sim, exagerado o lucro dos bancos. Conheço as razões da economia real, mas me permito observar que estes lucros são exagerados, únicos no mundo. Caberia uma contribuição de exceção para um comportamento de exceção do sistema financeiro. Com quatro ou cinco bilhões (10% dos lucros recolhidos em um fundo setorial específico) poderíamos financiar um programa de educação em ciências e matemática, complementar ao da escola regular. Poderíamos, sim, renovar profundamente a educação. Ela precisa de novas idéias. Melhorar os salários é importante, mas não é suficiente.A SBPC propõe criar Centros ou Oficinas de Ciências e Artes, laboratórios de Matemática, computação e línguas - um para cada dez escolas. Os alunos poderiam ser levados para esses Centros e lá realizariam as práticas de ciências e artes que não podem realizar na própria escola por falta de infra-estrutura, professores especializados, técnicos de manutenção etc. Chamaria esses centros de Occas - Oficinas de Ciências, Cultura e Artes. Elas teriam para as ciências e a cultura o mesmo papel que os campos de futebol têm para o esporte. Não se formam bons jogadores assistindo aos jogos, ou imaginando chutar a bola. É preciso jogar. Imaginar fazer um gol é muito diferente de enfrentar o adversário, driblar, chutar... Na educação em ciências e artes é a mesma coisa. O mais importante, porem, é criar um clima novo na educação, empolgar os jovens das Universidades. Os estudantes das Universidades públicas que poderiam ser os monitores os animadores das Occas. Há uma proposta da SBPC para o projeto de Reforma universitária em tramitação no Congresso em que propomos seja exigida uma contrapartida em serviços sociais dos alunos (das Universidades públicas): eles poderiam, por exemplo, oferecer apoio ao ensino de ciências, artes, línguas, matemática nas Occas. Teríamos, assim, centenas de milhares de jovens estudantes mobilizados para "jogar" o jogo da ciência e da cultura nestes novos campos "de várzea", e ensinar aos mais novos... Professores das Universidades, junto com professores do ensino médio, também poderiam participar do projeto. Eles deveriam ser convidados a conduzir os trabalhos nas Occas. Há, enfim, como gastar bem os recursos do fundo dos bancos. Acredito mesmo que convém a todos, e também aos bancos, construir um mundo em que todos conheçam bem a regra de três, álgebra, música e poesia. Todos poderiam verificar com maior rigor as contas, e a operação dos bancos seria menos onerosa...

- Outro ponto que o sr. abordou foi a Lei da Biodiversidade. A solução parece mesmo trancar os ministros em uma sala e só deixá-los sair depois de resolvido o impasse?

A lei em vigor de acesso à biodiversidade determina absurdas restrições à pesquisa científica e ao estudo dos ecossistemas naturais. Cientistas são presos por "pirataria". A rigor não podemos matar uma barata, formiga ou pernilongo... Ou coletá-los para estudo. A ciência não é parte da solução mas do problema da conservação ambiental. Somos inimigos a serem combatidos como os que derrubam florestas para extrair madeira, plantar soja e criar gado. Ora, enquanto não conhecermos bem a natureza, as florestas, as plantas e os animais que nelas encontramos, será difícil demonstrar que as arvores em pé valem muito mais do que as derrubadas. Que a madeira é como o papel do livro, não é nele que esta o valor do livro. Cortar a floresta e vender a madeira é como vender os livros pelo valor do papel. Precisamos aprender a ler, decifrar os códigos da natureza. Entender como funcionam as árvores, as formigas, as aranhas... Há milhares de espécies de frutas, sementes, microorganismos, de novos sabores, que podem ser imenso valor como alimentos ou para a medicina.

- Onde estão os principais problemas da Lei de Biodiversidade?

Os principais problemas estão no equívoco de confundir a coleta de espécies para pesquisa com a exploração extensiva e predatória de determinadas espécies de uso industrial. Imagina-se que, controlando o acesso à biodiversidade, se garante a conservação das espécies e dos ecossistemas. Para isso, é preciso antes de mais nada conhecer. Conhecer para conservar. E para isso é preciso estudar. Não há alternativa. Proibir o envio ao exterior de uma lagartixa ou uma pulga não é o melhor caminho para conservar as lagartixas, a fauna ou as pulgas. É óbvio que devemos evitar os saques e o extermínio de espécies que mostram algum valor comercial, mas isso é outra história. Nisso estamos todos de acordo. E podemos ajudar muito os órgãos de controle. O que não é possível é perder dias, meses, para solicitar licenças inúteis a uma burocracia mal orientada (por uma legislação desastrada). No último ano, 90% das coletas na biodiversidade não foram acompanhadas pela devida autorização. Se, obedientes, os pesquisadores tivessem solicitados as licenças, o Ibama não teria conseguido processar os pedidos... Por falta de tempo e competência de avaliação (cada espécie é uma espécie e, muitas vezes, há pouquíssimos especialistas em condições de julgar o valor e pertinência do pedido).

- Por que o sr. acha que não foi possível resolver até agora esses problemas? O assunto é mesmo delicado ou há falta de bom senso?

Há falta de bom senso. O Ibama acha que deve proteger a fauna e a flora como se fossem um patrimônio estático em que cada espécie está registrada e tombada... Existem milhões de plantas de organismos que se reproduzem, multiplicam, vivem e morrem, atravessam fronteiras sem autorização do Ibama. É uma missão impossível. Precisamos entrar em um acordo. E liberar a pesquisa. Caso alguma espécie se revele de interesse econômico, então deveríamos proceder a registros, estabelecer se há prioridades na propriedade intelectual, - como no caso dos conhecimentos tradicionais. Mas isso tudo deve vir depois. Basta colocar uma cláusula de retroatividade. Caso o produto se demonstrar útil, então os direitos de propriedade intelectual dos povos indígenas que sinalizaram esse uso ou utilidade deverá ser recompensado etc. A exploração em escala comercial da espécie vegetal ou animal deve ser avaliada e eventualmente autorizada e monitorada.

- O sr. disse claramente ao presidente que o contigenciamento dos recursos dos fundos setoriais é ilegal. Então, é um caso de Justiça?

Há uma lei complementar, a Lei de Responsabilidade Fiscal, que determina que os recursos dos fundos sejam utilizados somente para o fim que justificaram seu recolhimento. Esses recursos não são da receita tributária. Não podem, portanto, formar a reserva de contingência. Uma lei ordinária permite seu uso para pagamento da divida interna (e, portanto, justifica o recolhimento de parte desses fundos para a reserva de contingência). A lei complementar tem prioridade (hierarquia mais alta) sobre a ordinária. Portanto, o recolhimento é ilegal.

- Como resolver o problema do contingenciamento?

Não contingenciar mais e devolver o que foi recolhido para o devido fim: desenvolvimento científico e tecnológico. Grandes projetos em C&T não faltam; Amazônia, mar, espaço (satélites), energia, fármacos e vacinas, doenças tropicais, por exemplo.

- De zero a dez, que nota o senhor daria á política de Ciência e Tecnologia do Governo Lula?

A nota é dada sobre um conjunto de perguntas relativas a um programa ensinado... Não creio que seja este o caso. O que se pode dizer é que fizemos progressos, os orçamentos foram crescentes (pelo menos nos últimos dez anos) e deu-se continuidade aos programas que há décadas defendemos. Principalmente de formação de recursos humanos etc. Precisamos, no entanto, caminhar com maior velocidade em pesquisa. A reforma e autonomia da Universidade é também fundamental. Para colocar o país no mapa da economia mundial e promover um desenvolvimento econômico regional mais veloz é preciso estimular as engenharias, aplicar mais os conhecimentos, educar melhor na escola media e na graduação da universidade. É preciso fixar mais gente qualificada na Amazônia, nos centros fora do Rio e SP. Este é o principal desafio dos próximos tempos: fixar jovens nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, com condições de trabalhar, pesquisar e ensinar: em engenharia, química, física, farmacologia, medicina, matemática, antropologia, história música, literatura... Precisamos deles.

- Quais são os principais gargalos, os principais entraves da política de C&T atual?

A politica industrial é ainda nova, mas poderá ser, junto com a formação de recursos humanos, um poderoso instrumento de desenvolvimento científico e tecnológico. Ainda temos muito poucos quadros para enfrentar os desafios do desenvolvimento, principalmente nas regiões mais afastadas.

- Que avanços o sr. citaria?

À divulgação científica destinaram-se recursos importantes. Precisamos agora institucionalizar esse movimento. Ele é importante para promover maior aproximação da sociedade com a ciência, e evitar que os avanços científicos sejam interpretados pela sociedade como ameaça ou aceitos por uma espécie de fé nos cientistas. Precisamos explicar bem o que fazemos, e as vantagens e desvantagens do que se faz nos laboratórios. Avaliar juntos riscos e incertezas. Os fundos setoriais triplicaram os recursos recolhidos e destinados. Creio que ainda não alcançamos uma boa coordenação das ações dos diferentes ministérios em C&T quase todos tem ações mas elas são ainda pouco coordenadas. O Conselho Nacional de C&T (CCT) ainda não alcançou sua plena função: a de coordenar as políticas dos diferentes ministérios... (Saúde, Educação, Telecom, Transportes, Meio Ambiente, Agricultura, Defesa, Energia etc.

- Houve retrocesso em algum ponto?
Vou pensar.


Data: 05/09/2006