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Origens do homem: uma história que precisa ser reinventada

Ainda falta descobrir um bom número de fósseis que permitam esclarecer melhor os elos que faltam na teoria da evolução dos hominídeos

A paleoantropologia, que celebra neste ano 150 anos de existência, está em pleno processo de revolução. Ao longo dos últimos dez anos, acumularam-se descobertas que vieram questionar e deixar de ponta a cabeça as teorias existentes.

Elas transtornaram os modelos que tentavam explicar o surgimento do homem moderno, atropelando os lugares-comuns a respeito da pretensa unicidade da nossa espécie.

As mais recentes descobertas, que resultam do estudo dos novos fósseis - na África do Oeste, na Europa, na Ásia -, às quais se somaram os progressos da genética, não vieram confirmar o retrato de uma humanidade que foi se afastando aos poucos da animalidade para progredir de modo linear rumo ao Homo sapiens, e sim o de uma grande diversidade de espécies humanas que coexistiram.

O caminho percorrido, já faz um século e meio, é considerável. É o francês Boucher de Perthes que, no século 19e, funda a Pré-história, ao apresentar perante a Academia das ciências uma dissertação sobre as peças de sílex talhado que foram descobertos em 1844 nas planícies da Somme, perto de Abbeville (norte da França).

Ele estima que esses artefatos de sílex, que foram encontrados ao lado de restos de mamutes e de rinocerontes, foram talhados por mãos humanas. A sua dissertação é recusada, mas ele persevera nesta direção, sendo acompanhado por outros cientistas franceses e estrangeiros.

Em agosto de 1856, uma única escavação numa carreira do vale de Neander, na Alemanha, perto de Düsseldorf, faz aparecerem estranhas ossadas humanas.

Esta descoberta, seguida por outras, evidencia pela primeira vez a existência de uma outra humanidade, a do Homo Neanderthalensis. Esta descoberta constitui, no sentido mais estrito da palavra, o nascimento da paleoantropologia.

As características particulares do homem de Neandertal desagradarão fortemente aos paleontólogos. O francês Marcellin Boule dele fará um brutamonte - uma imagem que até hoje gruda à pele do nosso primo.

Quando, mais tarde, serão encontrados os restos antigos de Homo Sapiens - a nossa espécie -, bem mais apresentáveis, não faltarão aqueles que manifestarão, de certa maneira, o seu alívio.

Hoje, os especialistas remontam até épocas muito mais remotas. Os mais antigos representantes da espécie humana foram descobertos na África, tais como o Homo Habilis (2 milhões de anos) e o Homo Ergaster (1,9 milhão de anos).

Outros ainda foram trazidos à luz do dia na Ásia e na Geórgia (o Homo Georgicus, 1,8 milhão de anos).

Atualmente, a maioria dos paleoantropólogos apóia a teoria segundo a qual o Homo Ergaster, alto e talhado para a corrida, esteve na origem da primeira migração da humanidade a partir da África.

Contudo, alguns especialistas, tais como Robin Dennell e Wil Roebroeks, especulam que os primeiros grandes exploradores podem ter sido os australopitecos, antropóides - pré-humanos - que viveram na África entre 4,2 e 2,5 milhões de anos.

Esses hominídeos andavam em pé e possuíam maxilares poderosos dotados de dentes robustos.

A grande interrogação atual diz respeito ao ancestral comum hominídeo-chimpanzé. Dele ignora-se tudo, na falta de fósseis, e permanece desconhecida a data da separação entre as duas espécies. Os paleoantropólogos concordam em fixá-la por volta de 7 milhões de anos.

Isso permite integrar na linhagem humana seres muito antigos tais como o Ardipithecus Kadabba (de 5,2 a 5,8 milhões de anos), que foi descoberto na Etiópia por Yohannes Hailé-Sélassié; ou ainda o Orrorin Tugenensis (de 6 milhões de anos), que foi trazido à luz do dia no Quênia por Brigitte Senut e Thomas Pickford, e o Sahelanthropus Tchadensis (Toumai, de 7 milhões de anos), revelado pelas equipes de Michel Brunet e considerado, apesar das contestações, como pertencendo ao ramo humano.

Mas, em meados de 2006, uma pesquisa genética, realizada por Nick Patterson e David Reich, do Massachusetts Institute of Technology (Estados Unidos), publicada na revista "Nature", arremessa um tijolo na vidraça ao recuar a data da especiação entre hominídeo e chimpanzé entre 6,3 e 5,4 milhões de anos.

Além disso, os pesquisadores consideram que ela não se produziu de uma só vez: após terem se separado, as duas espécies teriam se reencontrado e se hibridizado novamente, antes de se separarem definitivamente.

A hipótese formulada pelos cientistas americanos - a qual eles qualificam eles mesmos de provocadora - a partir do estudo de 20 milhões de pares pertencentes ao genoma do homem, do chimpanzé, do gorila, do orangotango e do macaco, poderia questionar a valer a suposta vinculação dos mais antigos pré-humanos ao grupo dos hominídeos.

O que é contestado muito evidentemente pelos paleoantropólogos, e principalmente por Michel Brunet (Universidade de Poitiers, centro, do CNRS - Centro francês de pesquisas científicas).

Este último estima que se trata de "jogos intelectuais", enquanto Jean-Jacques Jaeger, um professor de paleontologia na universidade de Poitiers, considera que a hipótese não foi demonstrada e a qualifica de "geo-poesia".

Em contrapartida, o que fica claro, segundo ele, é que "nós não sabemos com que se pareciam aqueles seres". "Toda vez que é descoberto um fóssil novo muito antigo", prossegue Jean-Jacques Jaeger, "a sua existência permite vislumbrar mosaicos de caracteres que não são conhecidos".

Por exemplo, o Toumai, o Orrorin e o Ardipithecus constituem um novo estágio evolutivo que inclui o bipedalismo. Mas, em meio a que ambiente e dentro de que quadro será que este apareceu?

"Muitos tomam hoje este caráter como uma assinatura da hominização. Mas talvez seja um atributo ancestral de alguns macacos da África, que alguns dentre eles perderam", explica o cientista.

Conforme sublinha um outro pesquisador, Marc Godinot, um paleontólogo e especialista na evolução dos primatas que atua no Museu Nacional de História Natural, "um bipedalismo de postura nas árvores pode ter precedido um bipedalismo de marcha, de modo que a bacia pudesse se adaptar".

Isso porque era mesmo necessário que os primeiros hominídeos tivessem a capacidade de se locomover facilmente em pé antes de se aventurarem no terreno da savana.

"Nós não poderemos aprofundar nossos conhecimentos em relação aos mais antigos representantes da linhagem humana enquanto não dispusermos de fósseis datados de 10 e 5 milhões de anos, ou seja, antes e depois do último ancestral comum", analisa Pascal Picq, um mestre de conferências no Collège de France.

"Este é o único meio de conhecer a evolução de diferentes caracteres. A separação entre as espécies foi sem dúvida mais recente e mais complexa do que se pensa", diz.

Na passagem, Pascal Picq tira uma lasquinha dos paleoantropólogos, os quais ele critica por terem "uma visão gradualista da evolução humana".

"Mesmo se forem encontrados fósseis velhos de 8 a 9 milhões de anos, tenho certeza de que eles serão incluídos na linhagem humana, e não naquela dos grandes macacos", acrescenta.

O mais antigo ancestral comum hominídeo-chimpanzé não é o único assunto de debate atualmente.

Os especialistas seguem se interrogando até hoje a respeito das causas do desaparecimento do homem de Neandertal, uma espécie admiravelmente adaptada ao seu meio-ambiente glacial.

Será que o seu declínio inexorável, há 30.000 anos, foi provocado pela concorrência com o Homo sapiens, pela doença, ou por algo totalmente diferente?

Uma terceira interrogação diz respeito ao pequeno homem que foi descoberto, em 2003, na ilha de Flores, na Indonésia. Antigo de 18.000 anos e dotado de uma estatura de 1 m, ele possuía uma capacidade cerebral de 380 a 400 cm3, mais próxima àquela do chimpanzé ou do australopiteco do que daquela de Lucy (3,2 milhões de anos).

Em razão das suas características, os seus descobridores classificaram-no no quadro de uma nova espécie humana: o Homo Floresiensis.

Além disso, certos paleoantropólogos acreditam que este pequeno ser, oriundo de um Homo Erectus que permaneceu isolado durante muito tempo na ilha, viu o seu tamanho diminuir, assim como aconteceu com inúmeras espécies animais.

Mas esta explicação é contestada por várias pesquisas. A mais recente dentre elas, que foi publicada em 21 de agosto na publicação especializada "Proceedings of the National Academy of Sciences" (Procedimentos da Academia Nacional de Ciências - NAS) e realizada por uma equipe de pesquisadores indonésios, australianos e americanos, defende a tese de que o homem de Flores seria na realidade oriundo de Homo sapiens pigmeus, acometidos de várias anomalias, inclusive a microcefalia. (Le Monde. Tradução: Jean-Yves de Neufville)


Data: 01/09/2006