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Uma visão moderna da C&T agropecuária, artigo de Murilo Xavier Flores

A redução de recursos iniciada ao final dos 1980 evidenciou esses problemas e no início dos 1990 foram adotadas medidas que aproximavam a Embrapa de segmentos societários com cuidados, demandas e expectativas na sua área de atividades


Murilo Xavier Flores - Pesquisador da Embrapa, foi presidente da empresa e secretário do Desenvolvimento Rural do Ministério da Agricultura

A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), criada em 1973 para apoiar a modernização da nossa agricultura, nasceu e viveu orientada principalmente pelos resultados na produção.

Essa orientação propiciou o aumento da produtividade em áreas tradicionais, a incorporação de novas áreas - a exemplo do cerrado - e o acréscimo de novos produtos na pauta de produção, mas alguns problemas foram sendo identificados.

Os principais: a ausência da agricultura familiar no cardápio das pesquisas; a influência de virtuais usufrutuários econômicos na definição de prioridades, mantidos consumidores e ambientalistas fora do processo; e o desenvolvimento de projetos inspirados pelo interesse - íntegro e científico - dos próprios pesquisadores.

A redução de recursos iniciada ao final dos 1980 evidenciou esses problemas e no início dos 1990 foram adotadas medidas que aproximavam a Embrapa de segmentos societários com cuidados, demandas e expectativas na sua área de atividades.

Foi criado um programa para pequenos agricultores, visto sem entusiasmo pela cultura tradicional, passou a ser prestada mais atenção ao meio ambiente e à saúde pública (poluição, resíduos tóxicos em alimentos, disseminação de enfermidades) e, com o avanço da biotecnologia chegando à Embrapa, foram realizados investimentos em infra-estrutura e recursos humanos nesse setor novo.

A pauta da empresa se tornou mais extensa e complexa, mas sem forte alteração no modelo e no propósito tradicionais.

O caso da biotecnologia é emblemático no conflito entre a nova pauta e a velha cultura: porque impõe maior relacionamento entre a ciência e a sociedade, ele acabou envolvendo a Embrapa nos debates sobre os organismos geneticamente modificados (OGMs).

Em 2001 a Embrapa afirmou sua confiança nas normas legais e instituições públicas relacionadas com essa questão, na CTNBio e em outros órgãos; na mesma oportunidade, recomendou serem dadas aos consumidores condições para decidirem bem informados.

Em documento de 2003, ao reconhecer o potencial dos OGMs, ela preconizou a conveniência da precaução quanto aos efeitos no ser humano e outros organismos vivos, nela incluída a avaliação dos riscos para o homem e o meio ambiente.

Nessa ocasião, reiterou sua confiança nos órgãos especializados e a necessidade de bem informar os consumidores.

A combinação da responsabilidade com a insegurança quanto aos efeitos sobre o todo envolvido de fato institucionalizou o princípio da precaução, crescentemente adotado no mundo desenvolvido, em particular na Europa, mas a sociedade continuou apenas consumidora, com direito às informações úteis à decisão sobre o consumo.

O conhecimento, os valores e interesses da sociedade seguiam à margem dos rumos tecnológicos, com seus níveis de risco aceitáveis.

Situação que, ao admitir ser a ciência suficiente para decidir sobre bem-estar e segurança, já traz em si algum risco porque as "certezas" científicas não são definitivas, sempre evoluíram com o avanço da própria ciência.

Esse posicionamento, coerente com a tradição da Embrapa, também é coerente com a posição do governo federal: o próprio presidente da República declarou não convir o "debate ideológico" sobre o assunto, a ser considerada sob "contornos puramente científicos" - posição só parcialmente correta, pois o saber do pesquisador, naturalmente influenciado por seus juízos de valor, nem sempre responde com absoluta segurança às racionalidades sociais ou ambientais.

Não se trata de submeter a ciência ao plebiscito generalizado, mas convém que o hermetismo científico seja "temperado" por opiniões capazes de contribuir para que as pesquisas sejam compatíveis com o mundo que se deseja seguro para o povo.

Realmente: na integração sociedade-natureza é dia a dia mais preocupante o impacto da interação das ações antrópicas e naturais, que, além de poder ultrapassar os limites geográficos dos países, sugere a conveniência de atenção interdisciplinar, cuja abrangência costuma transcender uma única organização.

Esse problema é complicado em instituições de pesquisa, em geral bem relacionadas com suas similares, órgãos públicos de atribuições afins e os usufrutuários de resultados, mas não rigorosamente afeitas ao relacionamento com a sociedade.

Insere-se aí a Embrapa, cujo bom avanço na condução interativa de objetivos e prioridades convém ser acompanhado por avanço similar no tema do risco, ainda dependente apenas dela e de instâncias do Estado.

Para avançar nessa área convém à Embrapa formar competência na sociologia da ciência, capaz de perceber, entender e usar as preocupações de grupos sociais.

Convém-lhe formular parâmetros sobre risco, que constituam um padrão de ética para os pesquisadores. E lhe convém criar capacidade interdisciplinar para o estudo dos efeitos das tecnologias nos sistemas socioambientais e para a definição de estratégias de gestão desses efeitos.

Essa evolução, cujo sucesso depende de ser a ciência aceita como parte muito importante, mas nem sempre seguramente toda a verdade, criará acertos úteis entre ciência, tecnologia e sociedade, ajudando a evitar que novas tecnologias, além de soluções, venham a ser também problemas novos.

A evolução esboçada dará à empresa um destaque apoiado na sua competência orgânica, atenta às contribuições legítimas e oportunas da sociedade, credibilizando-a perante suas similares.

O esquema transparente ajudará a neutralizar os motivos mais comuns de resistência às pesquisas (efeito aplicável também às pesquisas privadas, se usados cuidados similares) e assegurará à Embrapa merecido realce protagônico na tecnologia agropecuária em áreas tropicais de todo o mundo.


Data: 01/09/2006