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Editorial do Jornal da Sociedade Brasileira de Química sobre acesso ao patrimônio da biodiversidade

"Muitos cientistas, por não serem atletas, desistem da corrida ou se revoltam com a altura dos obstáculos e infringem a legislação estabelecida pela MP"

O editorial foi publicado no volume 17, de setembro/outubro de 2006, e é assinado por Angelo C. Pinto, editor do jornal e pesquisador do Instituto de Química da UFRJ. Eis a sua íntegra:



A Medida Provisória (MP) No. 2186-16, de 23 de agosto de 2001, formulada e editada para preservar a biodiversidade nacional e o patrimônio genético, ao mirar os biopiratas acertou em cheio os pesquisadores brasileiros com atividades de pesquisa em áreas biológicas.

A autorização de acesso para coleta de plantas e animais em áreas biológicas assemelha-se a uma corrida de obstáculos com barreiras. Muitos cientistas, por não serem atletas, desistem da corrida ou se revoltam com a altura dos obstáculos e infringem a legislação estabelecida pela MP e, da noite para o dia, se transformam em biopiratas.

Essas autorizações podem levar mais de um ano, mesmo em se tratando de autorizações para a coleta de duas ou três espécies de organismos marinhos ou de plantas, não importando se as amostras serão temas de teses ou dissertações de bolsistas de pós-graduação do CNPq ou da Capes.

O mais curioso de tudo isso é que os próprios integrantes do Conselho de Gestão do patrimônio Genético (CGEN), Conselho esse criado no âmbito do Ministério do Meio Ambiente e que detém competência sobre as diversas ações de que trata a MP 2186-16, admitem que a legislação não é adequada para pesquisas científicas, a mesma opinião dos servidores do Ibama.

O Ibama é o órgão que foi credenciado pelo CGEN para autorizar instituições nacionais, públicas ou privadas, com atividades de pesquisa que envolva coleta, acesso ou remessa de amostras que não sejam caracterizados com a finalidade de bioprospecção ou desenvolvimento tecnológico e não envolva acesso a conhecimento tradicional associado.

Apesar do consenso de que a atual Medida Provisória inibe ao invés de fomentar, os estudos sobre a biodiversidade nacional, a burocracia do Ibama continua a mesma, com exigências como a assinatura dos dirigentes máximos das Instituições de Ensino Superior nas solicitações de autorização.

A assinatura dos Reitores das IES exige, em algumas universidades, que a solicitação tramite por pelo menos quatro colegiados que, normalmente, se reúnem uma vez por mês. Como, muitas das vezes, as solicitações ao Ibama são feitas para a coleta de uma única espécie de planta, que será tema de uma dissertação de mestrado, a exigência da assinatura do dirigente máximo das universidades é mais um ônus para o pesquisador e mais um motivo para tirá-lo do laboratório e afastá-lo das suas pesquisas.

A comunidade brasileira de químicos de produtos naturais é uma das mais prejudicadas com a burocracia do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

Muitos grupos de pesquisa suspenderam as viagens a parques e reserves para coleta de plantas para estudos porque o simples isolamento de uma substância micromolecular (seja conhecida ou inédita) significa acesso ao patrimônio genético, o que vem acarretando a interrupção de projetos aprovados e financiados pelas agências brasileiras de fomento à pesquisa.

O mais grave é que, até o momento, foram concedidas mais autorizações para estudos de bioprospecção e de desenvolvimento tecnológico do que para pesquisas científicas básicas. Parte desse problema é causada pela falta de compreensão dos analistas do Ministério do Meio Ambiente do tipo de pesquisas desenvolvidas pelos químicos de produtos naturais no País.

Os químicos de produtos naturais consideram importante preservar a integridade do patrimônio genético do País, de sua biodiversidade e a valorização do conhecimento tradicional das populações indígenas e comunitárias, em geral, e reafirmam que a Medida Provisória atende a estes objetivos.

Contudo, a comunidade de química de produtos naturais apela para que a Ministra do Meio Ambiente faça ver aos servidores do seu Ministério as diferenças entre uma concessão de autorização para coleta de amostras com fins econômicos ou conhecimento tradicional associado, e para a coleta com finalidades acadêmicas.

É importante que os químicos de produtos naturais não infrinjam a Medida Provisória e aguardem até que a situação seja resolvida pelas autoridades do Ibama. A Excelentíssima Senhora Ministra Marina Silva merece um voto de confiança da comunidade brasileira de química de produtos naturais.

Seus ideais de luta em defesa da preservação e conhecimento científico da biodiversidade são os mesmos dos químicos de produtos naturais que há anos se dedicam com grande desprendimento ao estudo da flora e da fauna brasileiras.

Por isso, a nossa esperança é de que vai prevalecer o bom senso. A Medida Provisória No. 2186-16 foi feita com o objetivo de preservar a biodiversidade e o patrimônio genético e não de criar obstáculos para a comunidade acadêmica, cujos objetivos estão voltados para o conhecimento científico da biodiversidade brasileira, um dos grandes patrimonies deste País e que, mais do que nunca, precisa ser estudada para ser mais conhecida e melhor preservada.


Data: 29/08/2006