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Embriões éticos, artigo de Marcelo Leite

Agora vai? Parece que não, o fosso está mais abaixo

Marcelo Leite - Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp



Agora vai. Robert Lanza, da empresa americana ACT (Advanced Cell Technology) publicou no periódico científico britânico "Nature" desta semana artigo descrevendo como produziu células-tronco "éticas". Quer dizer, células com potencial para uso em tratamento de saúde que não resultam da destruição de embriões humanos.

Até agora, as cobiçadas células-tronco embrionárias humanas (CTEHs) eram obtidas de embriões de cerca de 4 a 5 dias, na fase em que são chamados de blastocistos e têm mais de uma centena de células.

Nessa altura o embrião tem o formato de uma esfera oca, dentro da qual se encontra uma massa de células que dará origem ao feto propriamente dito, sendo por isso chamadas de pluripotentes (podem se transformar em qualquer célula do corpo).

Tal capacidade de transformação está na raiz do interesse dos pesquisadores.

CTEHs poderiam em princípio ser usadas para substituir células defeituosas ou de tecidos com problemas, como uma área do cérebro danificada pelo mal de Parkinson. Para obtê-las, contudo, a esfera do blastocisto tem de ser rompida, inviabilizando o desenvolvimento do embrião.

Isso desperta a ojeriza de todos aqueles que enxergam um ser humano naquela centena e meia de células.

Daí toda a resistência a esse tipo de pesquisa, que levou por exemplo às restrições da Lei de Biossegurança brasileira (podem ser usados somente embriões inviáveis com mais de três anos de congelamento em clínicas de reprodução assistida). Lanza acha que resolveu o problema.

A ACT repetiu com embriões humanos o que já tinha realizado com camundongos. Lançou mão de uma técnica usada em muitas clínicas avançadas de reprodução, a biópsia de embrião.

Quando ele tem apenas dois dias, uma de suas oito células é sugada por meio de pipetas finíssimas, as mesmas empregadas para manipular óvulos e espermatozóides no procedimento de fertilização in vitro.

A célula seqüestrada permite a realização de testes de DNA, para verificar a ocorrência de algumas doenças e síndromes genéticas conhecidas. Na sua ausência, o embrião pode ser implantado no útero da candidata a mãe e tornar-se um bebê sadio.

Lanza e companhia usaram a célula para iniciar uma cultura de CTEHs, preservando a integridade do embrião.

O pesquisador disse ao jornal "The New York Times" que não haveria mais "motivos racionais" para alguém se opor a esse tipo de pesquisa. Não é bem assim. Racionalmente, pode-se argumentar que a biópsia não é isenta de riscos para o embrião.

No caso do teste de DNA, o risco é assumido em seu benefício (afastar a possibilidade de doenças genéticas). Na técnica da ACT, em favor de outrem. Contra essa objeção, já se propõe que a célula arrancada seja posta a dividir-se, usando então suas descendentes para ambas as finalidades, diagnóstico e cultura de CTEHs.

Lanza desconsidera, porém, que existem objeções éticas contra a própria fertilização in vitro. De católicos, por exemplo. No Brasil, sua influência mantém em perigo até a Lei de Biossegurança, pois uma ação direta de inconstitucionalidade contra ela até hoje não foi julgada.

Além disso, a aparente simplicidade da técnica suscita a reflexão: poderia ter sido tentada antes, quando tantos pesquisadores juravam de pés juntos que o irracionalismo estava impedindo o progresso da ciência, ao rejeitar a violação de uma simples bolinha de células. Só o fizeram sob pressão.

Agora vai? Parece que não. O fosso está mais abaixo.


Data: 28/08/2006