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Ninguém diz adeus às armas: o que se gasta hoje com guerras no mundo

O trilhão de dólares que, calcula-se, poderá ser gasto pelos EUA no Iraque e no Afeganistão até 2016 servirá para alimentar a ciranda de interesses privados envolvidos nos conflitos engendrados por George W. Buch - entre muitos outros pratos do enorme banquete dos negócios de guerra

"Sou um presidente de guerra. Tomo decisões sobre questões de política externa com a guerra na cabeça", disse George W. Bush.

O presidente dos EUA certamente não conhece David Passaro, 40 anos, ex-paramédico das "forças especiais" do exército americano, condenado, na semana passada, por agressão violenta a um prisioneiro que ele, como contratado da Agência Central de Inteligência (CIA), interrogava numa base militar no Afeganistão, em 2003.

Mas a guerra que Bush tem na cabeça - contra o que chama de Eixo do Mal e, muito especialmente, contra "o terrorismo" - é a mesma que Passaro tinha como meio de vida.

Uma guerra sempre mais privatizada, que deixou de pertencer ao domínio exclusivo das razões de Estado. Passaro é o primeiro contratado da CIA condenado por infligir maus tratos a um prisioneiro.

Sua pena pode chegar a 11,5 anos de prisão. A decisão coube a uma corte federal instalada em Raleigh, Carolina do Norte, nos termos da legislação (U.S.A. Patriot Act) que estende a jurisdição criminal de tribunais americanos a instalações militares e diplomáticas no exterior.

Passaro agrediu o afegão Abdul Wali a socos, pontapés e golpes de lanterna (isso mesmo: lanterna).

O tribunal restringiu a justificativa da condenação de Passaro à constatação de agressão violenta e isentou-o de responsabilidade pela morte do prisioneiro, sob a alegação de que a causa somente poderia ser determinada mediante autópsia, à qual a família de Wali se opôs.

A guerra, como assunto privado, está na cabeça de mercenários como Passaro, chamados eufemisticamente de "contractors" pelo Departamento de Defesa dos EUA - assim como são chamados carpinteiros ou encanadores em qualquer cidade americana.

Eles podem ser "free lancers", como era Passaro, ou funcionários de empresas, elas também às vezes denominadas "contractors", que prestam serviços ao sistema comandado pelo Departamento de Defesa.

É o caso das americanas Titan Corporation (faturamento de US$ 1,29 bilhão em 2004, 12 mil empregados) e CACI International (US$ 770 milhões, 9.300 empregados).

No presídio de Abu Ghraib, que se tornou símbolo dos extremos a que podem chegar os abusos contra prisioneiros na guerra ao "terrorismo", essas duas empresas eram responsáveis por 100% dos intérpretes e 50% dos interrogadores.

A guerra, no Iraque, no Líbano, ou em qualquer outra parte, tornou-se um imenso negócio, subdividido em partes dos mais variados tamanhos, especialmente nesse ramo das "empresas de força militar privatizada" (EFMP), organizações que prestam serviços profissionais ligados a atividades de guerra, ou combate a guerrilha.

A denominação é aplicada por Peter Singer, especialista americano em segurança nacional, pesquisador no Brookings Institution, a empresas especializadas em competências de natureza militar, incluindo operações táticas de combate, planejamento estratégico, pesquisa e análise de inteligência, apoio operacional, treinamento de soldados, assistência técnica.

E muito mais. Essas empresas fazem de tudo, desde antes da guerra, durante a guerra, depois da guerra.

Fizeram seu mercado, vieram para ficar. Por isso mesmo, as questões que suas atividades suscitam ocuparão muitas das páginas do relatório, que será publicado em 27 de setembro como resultado do ciclo de conferências e estudos que a Woodrow Wilson School of Public and International Affairs, da Universidade de Princeton, iniciou em 2004 para desenvolver um estratégia de segurança nacional de longo prazo para os EUA.

Falando sobre o assunto na conferência, daquele ciclo, sobre privatização da segurança nacional, Peter Singer lembrou que, durante a Guerra do Golfo, em 1991, alguns dos mais sofisticados sistemas de combate já eram operados por EFMPs.

Por exemplo, as redes de defesa aérea embarcadas Aegis, para lançamento de mísseis a partir de destróieres, e as baterias de mísseis Patriot.

É nessa época que as EFMPs começam a ganhar relevância, com expansão crescente de influência.

No final de 2004, segundo estimativa de Singer, entre 60 e 80 dessas empresas operavam no Iraque e os "contractors", seus funcionários, eram mais de 20 mil.

Essa movimentação privatizante fluía, como acontece também hoje, principalmente com o empuxo da aplicação de tecnologia civil em sistemas de armamento.

Tornou-se crescente, então, a importância de empresas de tecnologia da informação e de eletrônica em atividades de defesa e aumentou também o número de empresas nas cadeias de suprimento das grandes prestadoras de serviços. Necessidades determinadas pela "guerra global ao terrorismo", como entendida por Washington, reforçaram essa tendência, explica-se no relatório do Sipri.

Singer define assim o tamanho da importância adquirida pelas EMPs: "Com o crescimento da indústria de força militar privatizada, o papel do Estado na esfera de segurança tornou-se desprivilegiado, do mesmo modo que em outras arenas internacionais, como o comércio e a finança".

Os negócios de guerra são, porém, maiores que as EFMPs a serviço dos EUA no Iraque. Pelas contas do Sipri, passou de um trilhão de dólares o total de gastos em equipamentos e serviços militares realizados no mundo em 2005 - quase metade, no orçamento do Departamento de Defesa americano.

E o faturamento das cem maiores empresas de equipamentos e serviços militares chegou a US$ 268 bilhões em 2004 (ano do levantamento mais recente), com alto grau de concentração em empresas americanas (40 delas ficaram com 63,3% do total) e européias ocidentais (36, com 29,4%).

Em relação a 2003, houve acréscimo de 15%, confirmando-se tendência de aumento que vem desde o final dos anos 1990.

Então, com a guerra na cabeça também vivem as empresas, americanas e européias à frente, de todos os tamanhos e variadas competências, interessadas em que se façam gastos militares - inclusive, a Halliburton, de logística, da qual o vice de George W. Bush, Dick Chenney, foi o principal dirigente antes de ir para o governo.

A guerra ao "terrorismo", acesa a partir dos atentados de 11 de setembro, com a invasão do Afeganistão em 2001e outro ponto de escalada em 2003, com a invasão do Iraque, deu novo impulso à proeminência tradicional dos EUA, e de suas empresas, no mercado de equipamentos e serviços militares.

Em 2004, ainda de acordo com dados do Sipri, os EUA foram responsáveis por metade dos gastos globais nessa área, com cerca de US$ 480 bilhões, e por 80% do aumento desses gastos globais de 2004 (US$ 975 bilhões) para 2005 (US$ 1 trilhão).

O Reino Unido, incondicional parceiro americano na guerra ao "terrorismo", segundo colocado, gastou US$ 48,3 bilhões em 2004, ou 5% do total mundial, em posição muito parecida com a da França, na terceira posição.

São negócios tão globais, esses de guerra, quanto se possa imaginar. Mas para todo lado que se olhe é certo que se verá um dedo dos EUA. Ou sua presença avantajada.

São americanas as três maiores empresas produtoras de equipamentos e serviços militares (Boeing, Lockheed Martin e Northrop Grumman, com vendas somadas de quase US$ 80 bilhões em 2004), assim como 13 das 20 principais e 46 das 100 maiores. O Reino Unido tem representação estelar na BAE Systems, 4ª maior do mundo, com vendas próximas de US$ 20 bilhões.

Empresas americanas ficaram com 30% das exportações de armas convencionais em 2005 (total de US$ 44-53 bilhões, estimado pelo Sipri).

No período 2001-2005, os quatro maiores importadores de armamento americano foram Grécia, Israel, Reino Unido e Egito, nessa ordem.

A Rússia faturou outros 30% em 2005. Em 2001-2005, seus maiores clientes foram China, com 43% das compras, e Índia, com 25%.

É um mercado caracterizado pela concentração, tanto nacionalmente como internacionalmente, tendência que se mostraria ininterrupta desde o final do século passado.

Como resultado, a participação das cinco maiores empresas entre as cem acompanhadas pelo Sipri passou de 22% em 1990 para 44% em 2003.

Nos EUA, cinco empresas dominam o mercado - Boeing, Lockheed Martin, Northtrop Grumman, Raytheon e General Dynamics, com vendas somadas de U$ 112 bilhões em 2004. Na Europa, as cinco principais - BAE Systems, Thales, EADS, Finmeccanica e MBDA - faturaram US$ 48 bilhões.

Militares americanos não parecem gostar dessa propensão ao ajuntamento. Um ano atrás, a revista eletrônica da Air Force Association publicou artigo em que analisava a questão.

"Houve época", dizia o autor, "em que a indústria militar americana se constituía de numerosos fabricantes e subcontratados, descendentes diretos do vasto 'Arsenal da Democracia' da Segunda Guerra Mundial. (...). Hoje, depois de uma grande reestruturação do mercado, apenas um punhado de gigantes industriais continuam de pé e no setor aeroespacial o volume de negócios é suficiente para manter apenas três grandes fabricantes de aviões" (Lockheed Martin, Boeing e Northtrop Grumman).

O problema da consolidação se estende, na verdade, a toda a indústria militar, concluía o autor do artigo, já que os maiores fornecedores que permanecem - as três antes citadas, mais a Raytheon - respondem por 46% dos cem maiores contratos de todas as áreas de fornecimento.

Numa situação assim, os militares do ar diziam que estava ameaçada a liderança do poderio americano nos céus globais.

Por que a falta de concorrência leva a preços maiores e reduz o estímulo para a inovação. Tem-se, então, equipamento menos eficiente e tende-se a retardar a renovação do existente.

Na edição deste mês de agosto, a revista da Força Aérea volta-se para uma questão correlata às tratadas há um ano, que começa a incomodar os militares e a indústria: a contenção de gastos por imposição do tamanho do déficit orçamentário do país, que deve chegar a US$ 260 bilhões no ano fiscal corrente.

"As forças armadas estão entrando no que poderá ser o mais desalentador período de aperto fiscal dos últimos dez anos", diz a revista.

"O orçamento do Pentágono para 2008, calculado recentemente em US$ 464,2 bilhões, poderá ser cortado, junto com todos os outros orçamentos do plano de defesa de seis anos", acrescenta o articulista.

"A força aérea, portanto, deve preparar-se para um combate orçamentário."

Não por coincidência, talvez, mas a título de argumentação figurada a favor da preservação de verbas, a Lockheed e a força aérea apresentaram em meados de julho em Fort Worth, Texas, o jato Lightning II, da família F-35 - um projeto de mais de US$ 40 bilhões, o mais caro já financiado pelo Pentágono, mas também vistoso por suas características de cooperação, entre países e empresas.

O Lightning, que deverá fazer os primeiros vôos de teste final ainda este ano, é um projeto conjunto da Lockheed, principal contratada, da Northtrop Grumman e da britânica BAE, do qual também participam, junto com os EUA e Reino Unido, principais financiadores e compradores compromissados, Itália, Holanda, Turquia, Canadá, Austrália, Dinamarca e Noruega. Israel e Cingapura entram como "participantes cooperativos de segurança".

Na Europa, os principais concorrentes do Lightning serão o francês Rafale (Dassault), o sueco Saab/BAE Gripen e o multinacional Eurofighter Typhoon.

Prevêem-se embates de pura economia de mercado, com todos os ingredientes de disputas comerciais vultosas - o que significa que não há lugar à mesa para ingênuos ou inexperientes.

Não só no caso de aviões (em média, US$ 50 milhões cada), mas em numerosos outros setores, os lobbies operam furiosamente, em manobras junto a todas as esferas de governo.

Áreas particularmente populosas, em matéria de diversidade de agentes em ação, é a das armas nucleares e espaciais.

O segmento de mísseis de defesa não fica atrás. Ali já se gastaram US$ 130 bilhões, desde que o presidente Ronaldo Reagan lançou o programa, nos anos 1980, à razão de US$ 8/9 bilhões por ano.

Os fluxos de dinheiro para os mísseis não param, apesar da ausência de resultados técnicos que os justifiquem. Por quê?

"Os pilares de apoio do programa incluem ideologia política, políticas que favorecem programas usados para fins eleitoreiros, lobby empresarial e a convicção de alguns, no Pentágono, de que um sistema de defesa de mísseis pode ser desenvolvido incrementalmente, mesmo que não seja 'perfeito'".

A explicação consta de detalhado estudo realizado por uma equipe de pesquisadores do World Policy Institute, de Nova York, relato impressionante da conjunção de lobbies que se apropriaram do programa de mísseis de defesa.

O atual secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, é figura de destaque em todas as passagens mais importantes do relato
(http://www.worldpolicy.org/projects/arms/reports/tangledweb.html ).

Essa escalada dos gastos militares no mundo, puxada pela "guerra global ao terrorismo" engendrada na Casa Branca, remete a uma velha questão:

gastos militares provocam estímulos econômicos por meio de aumento da demanda e inovação tecnológica, ou, ao contrário, retardam o desempenho econômico por extrair recursos que poderiam ser usados em atividades produtivas?

David Gold, da New School University, dos EUA, analisou quase um século de dados e concluiu (a exemplo de outros economistas) que não há como dar sustentação firme a nenhuma das duas hipóteses.

O efeito principal dos gastos militares dependerá sempre das especificidades de contexto, ou seja, seus impactos dependerão de outras peculiaridades do funcionamento da economia.

Em qualquer hipótese, diz Gold , encerrando seu texto ("Does Military Spending Stimulates or Retard Economic Performance?"), "os efeitos mais importantes podem estar noutro lugar" - na definição de segurança, na escolha de objetivos e estratégias ou na alocação de recursos.

Assim, por exemplo, gastar em mísseis de defesa ou aviões supersônicos que não têm missões, enquanto se negam recursos para assistência econômica ou à saúde em países em desenvolvimento, será clara demonstração de má alocação, com implicações para a segurança futura.

E conclui:

"Talvez o custo mais óbvio (dos gastos militares) seja a tendência para se usar forças militares e engajá-las em conflitos violentos. A guerra pode ser a coisa mais negativa para uma economia, especialmente quando não é necessária e acaba acarretando conseqüências no longo prazo."


Data: 25/08/2006