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Deus e o Diabo no caminho de Woo Suk Hwang - Artigo de Gilberto R. Cunha

Woo Suk Hwang era (e talvez ainda seja) uma referência mundial nas pesquisas com células-tronco

Gilberto R. Cunha - Chefe-geral da Embrapa Trigo, Pesquisador do CNPq e membro da Academia Passo-Fundense de Letras

Pouco importa se é Deus ou o Diabo (ou um f.d.p qualquer) que está no detalhe.

Ou, ainda, se significam a mesma coisa a famosa frase atribuída a Gustave Flaubert (ou ao arquiteto Le Corbusier, a Michelangelo, a Ludwig Mies van der Rohe, etc.), "le bon Dieu est dans le détail", e a versão que ganharia notoriedade em inglês como "the Devil is always in the details" e, no idioma pátrio, algo tipo "o diabo das pequenas coisas". Mas, o fato é: existe o detalhe.

E, não raro, o detalhe faz a diferença.

Vejamos, por exemplo, o caso da farsa protagonizada pelo cientista coreano Woo Suk Hwang e seus colegas da Universidade Nacional de Seul e do MizMed Hospital, que, no começo de 2006, trouxe à tona a fragilidade de um dos mais caros valores da comunidade científica internacional: o sistema de revisão pelos pares ("the peer review system").

Woo Suk Hwang era (e talvez ainda seja) uma referência mundial nas pesquisas com células-tronco.

Nos últimos dois anos, ele e seus colegas publicaram um conjunto de artigos sobre este assunto ou temas conexos, em pelo menos nove importantes revistas científicas (Science, Nature, Molecules and Cells, Stem Cells, Reproduction, Biology of Reproduction, Molecular Reproduction and Development, Theriogenology, etc.).

Dois deles, que saíram na revista Science, tiveram grande repercussão. O primeiro relatando a produção inédita de células-tronco clonadas a partir de células adultas de pacientes sadios (de fevereiro de 2004) e o segundo (de maio de 2005) sobre a criação de células-tronco embrionárias a partir do material genético de pessoas doentes.

Parecia ser o começo do fim de um dos principais riscos desse tipo de terapia: a rejeição. Infelizmente, isso ainda vai ter de aguardar mais um tempo, pois estes artigos foram declarados fraudulentos, em 10 de janeiro de 2006, por uma comissão de investigação instaurada na Universidade Nacional de Seul, onde Woo Suk Hwang era professor titular e dirigia o World Stem Cell Hub, um consórcio internacional de pesquisas e produção de células-tronco.

Para os editores de Science não restou alternativa que não a retratação pública. E assim o fizeram.

O fato reverberou e os editores de outras revistas que publicaram artigos de Woo Suk Hwang e seus colaboradores também deram início a investigações para apurar a veracidade das informações que divulgaram.

Apesar do escândalo, a equipe de Hwang, indiscutivelmente, fez progressos no assunto e notáveis feitos científico: o primeiro cachorro clonado do mundo, por exemplo.

O artigo publicado na revista "Nature", em agosto de 2005, divulgando o nascimento de Snuppy, um clone da raça "afghan hound" mostrou-se legítimo (Snuppy é um clone).

Há que diga, inclusive, que clonar um cachorro seria mais difícil que um humano.

Também ficaram evidentes que, apesar da falsificação de resultados dos artigos publicados e da manipulação no uso de imagens duplicadas em diferentes revistas (além da suposta elevada eficiência dos métodos utilizados, que se mostrou falsa), os avanços conseguidos por Woo Suk Hwang e seu grupo na clonagem de células-tronco embrionárias de seres humanos não podem ser desconsiderados totalmente.

Para um melhor entendimento dessa questão, cabe destacar que a publicação de um trabalho numa revista científica passa por várias etapas.

Começa, depois do recebimento do artigo, com um editor designando os chamados revisores ad hoc, que são especialistas no assunto e analisam a adequação do tema para publicação, o ineditismo das informações, a metodologia empregada, a apresentação e a discussão dos resultados e a pertinência das conclusões.

O problema é que toda a analise se baseia em dados fornecidos pelos autores do estudo, o que possibilita a falsificação de informações.

Não obstante, a necessidade de revisão e avaliação crítica dos resultados de estudos apresentados para publicação em revistas especializadas é algo indiscutível na comunidade científica.

As exceções não servem para generalizar um padrão de comportamento de cientistas (e de quem quer que seja) e nem podem definir a regra.

O sistema de revisão pelos pares ("the peer review system") não pode ser visto como uma panacéia nem está imune a falhas.

Isso pode ser observado em artigos que são publicados em renomadas revistas científicas e que, que, apesar de terem um título interessante, são pobremente escritos, sem qualquer desenvolvimento lógico, deixando mais questionamentos do que propriamente dando respostas.

Além de particularidades como hipóteses mal formuladas ou pobremente testadas, quando não, ignorando (por má fé ou desconhecimento de causa) um pressuposto básico do método científico: a rejeição (nunca a aceitação) das hipóteses que estão sendo experimentalmente avaliadas.

Entre as críticas ao sistema, destacam-se: o processo de escolha dos revisores, o tratamento dados aos trabalhos submetidos por cientistas renomados frente ao que é dispensado aos iniciantes, a lentidão do processo, a preocupação com a possibilidade de plágio de idéias pelos revisores, o favorecimento pelos revisores de manuscritos que estão de acordo com o seu pensamento, a falta de aceitação de idéias não ortodoxas, além da dificuldade de manutenção do anonimato dos autores e dos revisores.

Todavia, apesar do exposto, ainda não se inventou um sistema melhor (ou mais confiável).

A divulgação em revistas que mantém corpo editorial, são internacionalmente indexadas e praticam o "peer review system" é o diferencial de credibilidade das informações cientificas.

Paralelamente, vem ganhando cada vez mais espaço (e importância também), especialmente após o advento da Internet (e suas múltiplias possibilidades de associar texto, som e imagens), o sistema conhecido por "Grey Literature".

Na categoria de "grey literature", em formato eletrônico ou impresso, se enquadram publicações tipo "newsletters" (informativos), "reports", relatórios, anais de eventos, boletins, etc., produzidos tanto por entidades públicas quanto privadas (sem interesse comercial na área editorial, quase sempre).

Os defensores da "grey literature" advogam vantagens como a rapidez de divulgação, a flexibilidade, o surgimento de novos espaços para conteúdos que não se enquadram (em tamanho e formato) nos sistema tradicional, a disseminação de informações para uma audiência maior, etc.

Destaca-se, também, que esse tipo de literatura pode servir para ampliar a compreensão e a visão de determinados assuntos, subsidiando a produção de artigos que serão submetidos para publicação nos veículos convencionais da comunidade científica (nas mais diferentes áreas de interesse).

A "credibilidade" das informações disponíveis no sistema "grey literature", particularmente na Web, exige visão crítica do usuário (vale o mesmo para o "peer review system"; sem qualquer dúvida).

Não se discute: existe espaço (e ambos são importantes) para "peer review system" e "gray literature", na área de divulgação científica.

Há quem vislumbre (o autor deste artigo está entre eles) que o espaço da "grey literature" tenderá a aumentar cada vez mais, pois, no mundo que vivemos, a necessidade de acesso rápido e sem burocracia, pela sociedade de maneira geral, a novas informações, deverá ser cada vez maior.

No caso de Woo Suk Hwang, Deus e o Diabo se travestiram nos detalhes das denúncias dos colegas que, imbuídos de bons sentimentos ou inveja, o acusaram de usar óvulos doados por suas assistentes (possivelmente sob coação, apesar das suas negativas.

O cientista americano Gerald Schatten, que era parceiro de Hwang em publicações e delatou o fato, também foi alvo de investigação na Universidade de Pittsburg, onde leciona nos EUA, para apurar responsabilidades nas fraudes) e na disputa dos milhões de dólares da indústria farmacêutica.

Mais que cuidar de animais, o veterinário coreano parecia estar de olho nos "seres" humanos. Caiu por terra o mito do menino pobre da zona rural que havia virado um cientista genial (embora o valor dos seus feitos científicos não possa ser ignorado).


Data: 22/08/2006