O conteúdo, senhores, o conteúdo! - Artigo de Renato Gianuca
Ficaram de lado questões vitais, como o modelo de exploração dos serviços de som e imagem. Questões que deveriam ter sido discutidas e decididas antes da adoção do novo padrão. Além do ponto crítico: e o conteúdo, senhores?
Renato Gianuca - Jornalista
A digitalização em curso no mundo é chamada por vários especialistas de uma "revolução silenciosa". Aqui, no Brasil, chegamos a um certo exagero. Uma vasta cortina de fumaça encobre negócios bilionários. E uma guerra surda.
De um lado, os atuais concessionários de TV e rádio - a Rede Globo à frente. Do outro, as multinacionais de telecomunicações aqui instaladas. Entre os combatentes, aturdidos pelas salvas da barragem eletrônica, os milhões de telespectadores brasileiros.
Prometem tudo ao público, com a tecnologia digital. E mais o céu também. Falam em imagem de cinema, som impecável, maravilhas a que teremos acesso logo em seguida, após o decreto do governo federal que adotou o padrão digital japonês, no fim de junho de 2006.
Na sexta-feira (11/8), os desafios tecnológicos, econômicos e socioculturais da TV e do rádio digital foram amplamente debatidos em seminário promovido pela Câmara Municipal de Porto Alegre, com o apoio da PUC-RS (local do evento) e do FNDC, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação.
Ao longo do dia, sucederam-se os painéis e os palestrantes. Desde o ministro Tarso Genro, da Coordenação Política, até especialistas do Rio Grande do Sul e de outros estados.
Pairando sobre os debates, a sombra de inúmeras dúvidas: a decisão pelo padrão japonês terá sido a mais acertada? Terá o governo federal cedido às pressões dos barões da mídia, às vésperas de novo episódio eleitoral, em 1º de outubro próximo?
O que é certo - e que ficou do seminário na PUC-RS: a decisão foi apressada, um autêntico "prato-feito" à medida dos apetites dos radiodifusores. E pouco transparente. Sem nenhum debate mais aprofundado para ouvir os inúmeros setores da sociedade interessados na questão.
No cartaz afixado na parede do auditório da PUC-RS, uma verdade. E uma ironia, face ao já exposto: "TV e Rádio Digital: o vértice é o interesse público".
O coordenador-geral do FNDC, jornalista Celso Schröder, encarou o seminário de uma ótica mais otimista. E destacou a possibilidade de diálogo entre a sociedade civil e o governo. Também elogiou as pesquisas brasileiras no setor.
Mas, na realidade, o que se vê é que a política de comunicação do atual governo não se diferencia do governo anterior.
Sistema híbrido
Os especialistas, à tarde, cingiram-se aos aspectos tecnológicos da implantação do padrão japonês. Alguns até preferem chamar o novo modelo de "nipo-brasileiro".
É por causa das inovações introduzidas no sistema asiáticos pelos mais de 1.000 pesquisadores brasileiros envolvidos na primeira parte do projeto do Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD).
Pesquisadores da PUC-RS, como o professor Fernando de Castro, do Laboratório Multidisciplinar para Tecnologias da Informação e Telecomunicações do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas sobre TV Digital, garantem que um sistema desenvolvido ali, o "Sorcer", teria desempenho superior ao padrão japonês.
O ministro Genro procurou defender a posição de seu governo, para uma decisão imediata e rápida sobre a questão. O governo levou em conta motivos de política industrial e de política econômica para adotar o padrão nipônico, disse ele.
E garantiu que, assim, será implantado um sistema híbrido, com padrão japonês aliado às inovações dos cientistas e pesquisadores brasileiros.
Em disputa, o acesso
Para o professor Altamiro Susin, do Laboratório de Processamento de Sinais e Imagens, da Engenharia Elétrica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a TV digital é "fantástica", até pela oportunidade que proporciona à academia de realizar novas pesquisas.
Lembrou que, há mais de 20 anos, o Rio Grande do Sul já trabalha na área de microeletrônica. Ou seja: já existia massa crítica na academia para apresentar o chamado "valor agregado" no processo de digitalização, em conjunto com os japoneses.
O diretor do Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada de Porto Alegre (Ceitec), professor Sérgio Bampi, criticou a sistemática ausência nos debates de representantes das grandes empresas da mídia eletrônica e também de telecomunicações, além de fabricantes dos equipamentos.
Para os jornalistas, como este repórter, tudo bem com a tecnologia avançada que o Brasil introduzirá na mídia eletrônica. Mas, de fato, mais uma vez, a carroça está à frente dos bois.
Ou seja: ficaram de lado questões vitais, como o modelo de exploração dos serviços de som e imagem. Questões que deveriam ter sido discutidas e decididas antes da adoção do novo padrão. Além do ponto crítico: e o conteúdo, senhores?
Bampi, nesse ponto, foi claro: a inclusão digital e social, prevista pela adoção no Brasil da nova tecnologia, não será possível meramente por decretos. E enfatizou, em sua intervenção: o que está de fato em disputa é o acesso a uma concessão pública, os novos canais a serem criados com a digitalização.
"A interatividade é possível, mas há o fosso entre o discurso e o desejo, de um lado, e a realidade do outro", disse o diretor do Ceitec.
Educação e inclusão
Já ao fim, na parte dos debates, surgiu o descontentamento de parte do público. Todos a favor da tecnologia, é certo. Mas sem cair nas armadilhas do fetiche da técnica. Que leva certamente a atitudes e posições tecnoarrogantes, como algumas ouvidas durante o seminário.
Neste momento, o superintendente-executivo da Associação Brasileira de Telecomunicações (TeleBrasil), César Rômulo Silveira Neto, até surpreendeu a platéia. Disse que ele, pessoalmente, preferiria produzir conteúdo, em vez de produzir chips.
E destacou a necessidade de utilização da nova tecnologia de imagem e de som para formarem-se e se reforçarem valores éticos e culturais entre os telespectadores.
Essa posição está de acordo com a visão dos jornalistas presentes: o que está sendo transmitido, hoje em dia, via analógica, dará no mesmo no padrão digital. A menos que o conteúdo da programação seja alterado, radicalmente.
Há condições, com os novos canais a serem criados, de produção e transmissão de programas 24h diárias para educação e inclusão social. O professor Susin disse que confia na capacidade e na criatividade dos brasileiros.
Ele prega que, com o novo sistema digital, exista afinal um local fixo para a interação, para a inclusão digital e para conteúdos locais, em vez da atual programação pauteurizada e transnacional.
"Sem incrementar a educação dos brasileiros, o nível de baixaria na TV deverá continuar, não importa qual o padrão", concluiu o acadêmico da UFRGS, sob aplausos.
Data: 16/08/2006
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