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Câncer do cão - Artigo de Marcelo Leite

O tumor "fugiu" de seu corpo original e virou um parasita

Marcelo Leite - Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp


Quando enviou para um italiano algumas amostras de tumores caninos em 2001, a veterinária brasileira Mary Suzan Varaschin não sabia no que estava se metendo.

Já nem se lembrava do nome do pesquisador, que tomara nota de sua experiência com o tumor venéreo transmissível canino (TVTC) por meio do resumo em inglês de um artigo que ela havia publicado no periódico "Clínica Veterinária".

Varaschin trabalhava, na época, na Universidade José do Rosário Vellano (Unifenas), em Alfenas (MG). Hoje é professora titular da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Na mudança de emprego, perdeu todos os contatos que havia feito por correio eletrônico, inclusive com o italiano. O nome dele é Claudio Murgia.

Como manda a etiqueta, o italiano agradece pelas amostras num artigo do periódico científico "Cell" que soluciona um enigma veterinário iniciado há mais de dois séculos, quem sabe até 2.500 anos atrás: o TVTC não só pode passar de um cão a uma cadela, e vice-versa, como também é provavelmente a mais antiga população de células clonais conhecida.

Dito de outra maneira, esse tumor canino, em geral benigno, não é composto de células do próprio cão infectado, mas de células de um animal que viveu séculos atrás, provavelmente um lobo ou uma raça asiática muito próxima desse ancestral dos cachorros.

O agente infeccioso são as próprias células tumorais, adquiridas durante o ato sexual ou coadjuvantes, como fungadas e lambidas.

Instaladas no novo hospedeiro, as invasoras começam a se multiplicar, dando origem ao tumor, que adquire o aspecto de uma couve-flor e pode alcançar vários centímetros.

Raramente é fatal, como convém a um parasita bem-sucedido (se matar muito e rápido demais, morre junto, antes de alcançar o próximo hospedeiro). Regride espontaneamente, ou então pode ser tratado com quimioterapia.

Murgia, que trabalha na Universidade de Glasgow (Escócia), aliou-se a colegas do University College de Londres e da Universidade de Chicago para analisar o DNA de 40 amostras de TVTC (o artigo fala de "cinco continentes", mas foram só quatro: Europa, África, Ásia e América).

A primeira coisa que notaram é que os genes das células cancerosas sempre diferiam daqueles do animal afetado. Depois, que eram muito similares aos de tumores de outros animais.

Embora a noção de transmissão do TVTC por células intactas já estivesse na praça há três décadas, havia também relatos de prováveis partículas virais nas células redondas associadas ao tumor.

Os vírus, então, poderiam ser os causadores das anomalias genéticas, tornando cancerosas as células do próprio hospedeiro. A prova de que o tecido doente era composto de células alienígenas capazes de enganar o sistema imune dos cães só veio agora, com o trabalho de Murgia.

Comparando a assinatura genética das células-irmãs de vários tumores com a de numerosas raças atuais de cachorros, o grupo concluiu que seus parentes mais próximos são os lobos e certas raças asiáticas, como basenjis, malamutes e samoiedas.

Isso quer dizer que a primeira célula parasita capaz de se transmitir sexualmente de um cão a outro deve ter surgido num animal selvagem, ou numa dessas raças, sendo disseminada a partir daí.

"O câncer escapou de seu corpo original e se tornou um parasita transmitido de cão a cadela e de cadela a cão, até colonizar o mundo inteiro", disse virologista Robin Weiss, um dos autores do artigo na "Cell".

Globalização, portanto, é coisa das antigas.


Data: 14/08/2006