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Será mesmo um "mico repassado"? - Artigo de Washington Novaes

O leitor terá notado quantas dúvidas de numerosos cientistas foram mencionadas sobre a sustentabilidade desse caminho e sua capacidade de manter a biodiversidade nas áreas concedidas - dúvidas que estão até hoje à espera de resposta

Washington Novaes - Jornalista especializado em meio ambiente, já foi secretário de C&T e Meio Ambiente do Distrito Federal


Ao longo dos meses em que tramitou no Congresso Nacional o projeto de lei que permite entregar a gestão de florestas públicas a empresas privadas, para "manejo sustentável", o eventual leitor que acompanhe neste espaço artigos do autor destas linhas terá notado quantas dúvidas de numerosos cientistas foram neles mencionadas sobre a sustentabilidade desse caminho e sua capacidade de manter a biodiversidade nas áreas concedidas - dúvidas que estão até hoje à espera de resposta.

A elas se acrescentaram os números apresentados pela Organização Internacional de Madeiras Tropicais: só em 7% dos 353 milhões de hectares no mundo sob "manejo sustentável" a situação é "satisfatória". Já para a revista New Scientist (7/6), só em 3% dessas áreas há padrões adequados de exploração.

Também terá lido nos artigos as restrições levantadas por entidades ambientalistas que se retiraram de uma consulta pública sobre o Plano Amazônia Sustentável por entenderem que ele pouco ou nada significará, por falta de recursos e por trafegar na contramão dos grandes projetos governamentais para aquele bioma.

Ou a denúncia de entidades ambientalistas de que a transferência pelo Ibama às secretarias estaduais amazônicas do licenciamento para desmatamentos e fiscalização significa apenas "repassar o mico", já que é notória a deficiência de recursos dos órgãos estaduais, também muito vulneráveis a pressões políticas locais.

Os últimos dias foram igualmente fartos de notícias preocupantes. A Agência Fapesp, por exemplo, divulgou (1/8) pesquisa do professor Gregory Asner, do Instituto Carnegie, de Stanford, segundo quem é preocupante a situação em áreas de floresta submetidas a corte seletivo: 32% delas, manejadas entre 1999 e 2004, "foram posteriormente arrasadas em quatro anos".

Mais inquietantes ainda são notícias do simpósio promovido pelo Ministério do Meio Ambiente em Belém, nos primeiros dias deste mês (http://www.amazonia.org.br, 3/8), para discutir exatamente a Lei de Gestão de Florestas Públicas e os caminhos da descentralização dessa gestão, que está sendo repassada aos Estados.

O roteiro que vem sendo trilhado foi sepultado pelas críticas das instituições que trabalham na região, inclusive muitos dos órgãos estaduais.

O representante do WWF, por exemplo, enfatizou a necessidade de aparelhar os Estados - funcionários, infra-estruturas, planejamento - antes de repassar a competência - o que não vem sendo feito, a seu ver.

Já o representante da  Amigos da Terra lembrou que o artigo da Lei de Gestão que permite esse repasse de competência "foi incorporado à última hora, sem a devida discussão com a sociedade".

E a possibilidade de os Estados aprovarem a exploração de florestas públicas antes de examinada pelo Ibama envolve o risco de o órgão federal se desinteressar do processo e "se submeter aos interesses dos Estados".

Já para o representante do Greenpeace, "a inserção do artigo 83, que modifica o Código Florestal, é um retrocesso de 30 anos na política ambiental brasileira".

Mais problemático ainda é que a maioria dos representantes dos Estados amazônicos concordou com as críticas e preocupações. O secretário de Florestas do Acre, por exemplo, entende que, com os processos burocráticos defasados, "é um risco muito grande ter um processo descentralizado e perder o controle, que hoje já não é lá dessas coisas.

Se não houver muito cuidado, a situação pode se tornar pior do que é hoje". O secretário de Meio Ambiente do Amazonas foi ainda mais enfático: seu Estado não tem condições de assumir as atribuições do Ibama nos próximos anos, por não dispor de estrutura, tradição e pessoal.

E isso, na sua opinião, não se resolverá nem no curto, nem no médio prazo. A exceção foi o representante do Pará, que deseja o repasse de atribuições. O termo de cooperação com o Ibama já está assinado.

Não por acaso, Pará e Mato Grosso (ao qual também já foi repassada a competência) são os Estados com maior índice de desmatamento. O primeiro é também o campeão de invasões de reservas indígenas (O Liberal, 12/7).

No segundo, há um mês operação conjunta da Polícia Federal e do Ibama descobriu (Folha de SP, 7/7) que madeireiras já vinham falsificando guias para transporte da madeira, recém-implantadas pelo Estado, após o repasse da competência.

E no Pará, relatório da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) diz que estão nesse Estado 40% dos 675 casos de violação de direitos humanos ou crimes ambientais (incêndios, desmatamentos, crimes ambientais) que arrolou na região amazônica.

Não por acaso, o Tribunal de Justiça paraense bloqueou nos últimos tempos 100 mil títulos de terra, enquanto a Corregedoria desse órgão diz que são fraudados 120 mil dos 200 mil títulos de terra a ele submetidos.

Já a pouca eficácia dos caminhos para fiscalização na área amazônica parece demonstrada pela notícia divulgada há pouco (13/7) por este jornal: nos últimos cinco anos, só 11,5% das multas aplicadas pelo Ibama na Amazônia (R$ 35,8 mil de R$ 308,6 milhões) foram efetivamente pagas.

Não bastasse, a própria efetividade da política governamental parece clara na queixa feita pela ministra Marina Silva durante sua passagem pela Organização Mundial do Comércio (OMC), em Genebra (Estado, 6/7).

Lembrou ela que há mais de ano e meio o Ministério da Agricultura foi encarregado pela Casa Civil da Presidência de preparar plano de utilização de áreas já desmatadas na Amazônia para expansão da agropecuária - de modo a evitar desmatamentos com esse fim.

Mas nada aconteceu (e a Embrapa há mais de 20 anos está cansada de mostrar que, por esse caminho, seria possível quase dobrar a produção nacional de grãos e carnes, sem derrubar uma só árvore).

Razões para preocupação não nos faltam. Mas faltam explicações.


Data: 11/08/2006