topo_cabecalho
A proposta brasileira de um satélite científico regional: méritos e desafios - Artigo de Petrônio Noronha de Souza

A proposta tem mérito, mas que exigiria maestria política na concepção, extrema competência técnica e gerencial na condução, aliada a alguma sorte para evitar que crises econômicas e políticas possam prejudicá-la em demasia

Petrônio Noronha
de Souza - Tecnologista do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e presidente da Associação Aeroespacial Brasileira (AAB)



A delegação liderada pela Agência Espacial Brasileira (AEB) apresentou na V Conferência Espacial das Américas, realizada em Quito, uma proposta de desenvolvimento de um satélite científico de cunho regional, que seria produzido segundo as possibilidades e interesses de cada uma das nações da América Latina que viessem a se consorciar com este objetivo.

Trata-se certamente de proposta dotada de mais objetividade que a simples idéia de formação de uma agência espacial regional. Ela tem o mérito de, a partir de organizações e infra-estrutura já existentes, congregar interesses estratégicos, científicos e industriais das nações interessadas.

Méritos à parte, é obrigatório pensar nos desafios e riscos que podem eventualmente prejudicar sua implementação.

O primeiro é o de garantir que ela seja uma iniciativa que conte com prioridade adequada e de longo prazo por parte das nações envolvidas, que seja fruto de compromissos que reduzam a chance de ver interesse e recursos minguar, passado o impulso inicial ou após mudanças de governo.

Cabe lembrar que programas espaciais não figuram no topo da lista de prioridades da maioria das nações provavelmente envolvidas.

O segundo desafio seria delinear uma missão, seja ela científica ou de aplicações, que não replique sistemas já existentes.

Adicionalmente, ela deveria ser inquestionavelmente focada em interesses específicos de nossa região, posto que este não seria um sistema de cobertura global, mas apenas regional.

O próximo desafio seria o de negociar um arranjo legal entre as partes que, dadas as disparidades dos níveis de desenvolvimento dos programas espaciais entre as nações que viessem a se envolver, fosse capaz de oferecer a cada uma um equilíbrio satisfatório entre responsabilidades e benefícios, de forma a evitar a existência de parceiros de primeira e segunda categoria.

Resta ainda o desafio de criar uma estrutura de projeto na qual haja uma centralização do gerenciamento, aliada a uma descentralização dos benefícios e dos dados a serem obtidos.

Sem diluir o caráter multilateral da iniciativa, seria fundamental que uma nação assumisse a liderança do processo e estivesse disposta a alocar recursos adicionais para reduzir os riscos introduzidos por eventuais inadimplências de outros parceiros. Em síntese o projeto só poderá sobreviver se tiver uma dose adequada de "resiliência".

Três critérios deveriam ser considerados para o estabelecimento da liderança:

a) a competência em gerenciamento de projetos, com ênfase em engenharia de sistemas e um sistema da qualidade já implantado e testado;

b) a disponibilidade de infra-estrutura industrial, de integração e testes e, de sistemas de solo;

c) a disponibilidade de uma base tecnológica ao menos para o desenvolvimento da plataforma do satélite. A responsabilidade pelas cargas úteis (instrumentos) poderia ser distribuída para várias nações, ou desenvolvidas em arranjos bilaterais.

O modelo a ser proposto provavelmente seria fundamentado em um acordo intergovernamental dentre as várias nações envolvidas.

Estas seriam representadas por suas respectivas agências espaciais nacionais, ou outras organizações que pudessem exercer este papel.

Exemplos existem vários, tais como o consórcio de nações que conduzem o programa da Estação Espacial Internacional (ISS), ou outros variados arranjos voltados para missões científicas e tecnológicas firmados entre as agências espaciais americana, européia e japonesa.

Dentre todas as arquiteturas vigentes, talvez a que melhor sirva ao propósito do desenvolvimento de um satélite que atenda a prioridades regionais dentre nações que apresentem assimetrias significativas, seja a adotada pela agência espacial européia (ESA) para a condução de seus projetos.

Nela as nações participantes engajam-se de forma voluntária e contribuem de maneira não eqüitativa para a sua realização.

O sistema se sustenta por meio de um critério de repartição geográfica dos contratos industriais na proporção das contribuições individuais, independentemente das eventuais ineficiências que este sistema de alocação possa introduzir no processo.

Finalmente, devem ser consideradas as fragilidades que ainda permaneceriam presentes, como é o fato de nenhuma das nações da região ainda dispor de meios de lançamento operacionais.

Isto significa que, independentemente das contribuições individuais, hoje ainda seria necessário considerar a utilização de um foguete lançador adquirido junto a uma nação não participante do projeto.

Em conclusão, trata-se de uma proposta de mérito, mas que exigiria maestria política na concepção, extrema competência técnica e gerencial na condução, aliada a alguma sorte para evitar que crises econômicas e políticas possam prejudicá-la em demasia.


Data: 02/08/2006