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Contra as cotas raciais, mas... - Artigo

A via do mérito acadêmico não se resume à nota no vestibular

Marcelo Leite - Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor dos livros paradidáticos "Amazônia, Terra com Futuro" e "Meio Ambiente e Sociedade".

 

O assunto só marginalmente tem alguma coisa a ver com ciência (inexistência de raças sob o ponto de vista genético-populacional etc.), mas precisamente esse aspecto será deixado de lado. É melhor não turvar a discussão, política e de justiça, com o fantasma de falácias naturalistas, já banidas do debate sobre o inquestionável racismo da sociedade brasileira.

Em boa hora o governo federal ensaia desacelerar a tramitação do Estatuto da Igualdade Racial no Congresso, para aprofundar a discussão na esfera pública e possivelmente abrandar a exigência de cotas raciais no ensino universitário em favor de outro mecanismo de inclusão, talvez com base em critérios socioeconômicos.

Estão certos os que deploram no estatuto em exame um viés racificante (um neologismo para evitar a acusação fácil e envenenadora de que militantes anti-racismo seriam os "verdadeiros" racistas). Seu artigo 23, que torna "obrigatória à inclusão do quesito raça/cor, a ser preenchido de acordo com a autoclassificação, em todo instrumento de coleta de dados do censo escolar promovido pelo Ministério da Educação, para todos os níveis de ensino", fixa em documentos, para cada criança, um rótulo que hoje só existe culturalmente e só por isso carrega alguma esperança de superação na biografia.

O instrumento da cota racial, da reserva de vagas na universidade e no serviço público, também enfrenta dificuldade. Isso que está previsto no artigo 52 do estatuto jamais alcançará consenso, por afrontar o princípio do mérito individual. Tenta resolver a injustiça presente com mais injustiça (se tiver por base critério exclusivamente racial). Mas... a questão não se resolve apenas propondo cotas socioeconômicas, nem defendendo a melhoria generalizada da educação pública.

A primeira nada propõe acerca da discriminação adicional que sofre o negro pobre. A segunda joga a solução para as calendas e se mostra quase perversa, porque só um cego não vê que a educação caminha na direção oposta.

A insistência no mérito puro e simples -medido por essa coisa primitiva chamada vestibular- é insuficiente. Flagra-se não o mérito propriamente dito, mas um instantâneo do privilégio acumulado ou, inversamente, da sub-representação de negros no acesso dos pobres aos meios para... passar no vestibular.

O que espanta é o silêncio, na reação que se levantou contra o estatuto, acerca da experiência da Unicamp. Ali se concede um bônus médio de 5,6% na nota obtida no vestibular por alunos de escolas públicas, acrescido de menos de 2% para autodeclarados negros e indígenas. Isso elevou a participação dos alunos de escolas públicas de 28,7% para 33%, enquanto o número absoluto de negros e indígenas aumentava 57%.

Isso não fez despencar a qualidade do ensino universitário, como apregoam alguns fundamentalistas do mérito. Embora aprovados no vestibular com notas um pouco menores (com ajuda dos bônus), os favorecidos tiveram desempenho médio superior em 31 dos 56 cursos analisados num levantamento da Unicamp e empataram noutros quatro.

Eis uma alternativa às cotas raciais, enfim, que encara o mérito acadêmico como um processo, não como um ponto fixo a ser capturado só no momento do vestibular. Vários favorecidos provaram que eram de fato os melhores.

É por esse tipo de solução criativa, generosa e construtiva que adversários dos absurdos do Estatuto da Igualdade racial deveriam bater-se, indo além da simples reação.


Data: 17/07/2006