topo_cabecalho
Quando publicar um segredo? - Artigo

Este é um editorial conjunto publicado simultaneamente nos jornais "Los Angeles Times" e "The New York Times" e assinado por seus respectivos diretores de redação, Dean Baquet e Bill Keller


Desde 11 de setembro de 2001, editores de jornais enfrentam decisões torturantes na cobertura dos esforços governamentais para proteger o país contra agentes terroristas.

Cada um de nós reteve informações, em algumas ocasiões, porque ficamos convencidos de que publicá-las teria colocado vidas em risco. Em outras, cada um de nós decidiu publicar informações classificadas como sigilosas sob fortes objeções.

Na semana passada, nossos jornais revelaram um programa secreto da administração Bush para monitorar transações bancárias internacionais.

Nós o fizemos depois de apelos de autoridades de alto escalão da administração para retermos a matéria.

Nossas reportagens - como revelações anteriores da imprensa sobre medidas secretas de combate ao terrorismo - reavivaram um debate emocional em âmbito nacional, com acusações iradas de "traição" e propostas de que os jornalistas fossem presos, junto com muitas confusões e preocupações genuínas sobre o papel da imprensa em tempos como estes.

Somos rivais. Nossos jornais competem numa centena de frentes todos os dias. Aplicamos os princípios do jornalismo individualmente como editores de jornais independentes.

Concordamos, porém, em alguns aspectos básicos sobre a imensa responsabilidade que os fundadores do país conferiram à imprensa.

Não se enganem, os jornalistas têm um interesse grande e pessoal na segurança do país. Vivemos e trabalhamos em cidades que têm sido tragicamente marcadas como alvos terroristas.

Repórteres e fotógrafos de nossos jornais desafiaram o risco nas torres atingidas para transmitir o horror ao mundo.

Hoje temos correspondentes ao lado de tropas nas linhas de frente no Iraque e no Afeganistão.

Outros arriscam suas vidas na tentativa de entender a ameaça terrorista; Daniel Pearl, do jornal The Wall Street Journal, foi assassinado numa missão dessas.

Nós, e as pessoas que trabalham para nós, não somos neutros na luta contra o terrorismo.

Mas o ódio virulento dos terroristas, a julgar por sua literatura, é dirigido não apenas contra nosso povo e nossos edifícios.

Ele visa também nossos valores, nossas liberdades, e nossa fé no governo autônomo de um eleitorado esclarecido.

Se a liberdade de imprensa deixa alguns americanos apreensivos, ela é amaldiçoada pelos ideólogos do terror.

Há 35 anos, na decisão da Suprema Corte que impediu o governo de suprimir a história secreta da Guerra do Vietnã conhecida como os Pentagon Papers, o juiz Hugo Black escreveu:

"O poder do governo de censurar a imprensa foi abolido para que a imprensa possa permanecer para sempre livre de censura do governo. A imprensa foi protegida para que pudesse desnudar os segredos do governo e informar o povo."

Como essa história judicial nos recorda, o conflito entre a paixão do governo pelo segredo e o impulso da imprensa para revelar não é recente.

Isso não começou na administração Bush, embora a polarização do eleitorado e o desafio assustador do terrorismo tenham aguçado a tensão entre imprensa e governo como nunca desde os tempos em que o juiz Black se pronunciou.

Nosso trabalho, especialmente em tempos como estes, é levar a nossos leitores informações que lhes permitam julgar o quanto seus líderes estão trabalhando em benefício dos cidadãos e a que preço.

Nos últimos anos, nossos jornais lhes trouxeram grande quantidade de informações que a Casa Branca jamais pretendeu que vocês soubessem - segredos classificados sobre a inteligência questionável que levou o país à guerra no Iraque, sobre o abuso de prisioneiros no Iraque e no Afeganistão, sobre a transferência de suspeitos a países que não têm escrúpulos em usar a tortura, sobre a escuta clandestina feita sem autorização.

Como observou recentemente Robert G. Kaiser, editor associado do jornal The Washington Post nas páginas desse jornal:

"Vocês podem ter ficado chocados com essas revelações, ou nada perturbados por elas, mas teriam preferido não saber nada sobre elas? Se uma guerra está sendo travada em nome dos EUA, os americanos não deveriam entender como ela está sendo travada?"

As autoridades federais, compreensivelmente, querem as duas coisas. Querem que nós protejamos seus segredos, e querem que apregoemos seus sucessos.

Alguns dias atrás, o ex-secretário do Tesouro, John Snow, se declarou escandalizado com a nossa decisão de noticiar o programa de monitoramento de bancos.

Mas em setembro de 2003, o mesmo Snow convidou um grupo de jornalistas de nossos jornais, do "Wall Street Journal" e outros para viajar com ele e seus assessores num avião militar para uma excursão de seis dias.

A intenção era mostrar os esforços da secretaria para rastrear o financiamento ao terrorismo.

A equipe do secretário discutiu muitos detalhes sensíveis de seus esforços de monitoração, na esperança de que eles aparecessem na imprensa e mostrassem o quanto a administração estava sendo implacável contra a ameaça terrorista.

Como nós, editores, devemos conciliar a obrigação de informar com o instinto de proteger? Às vezes os julgamentos são fáceis.

Nossos repórteres no Iraque e no Afeganistão, por exemplo, tomam muito cuidado para não divulgar dados operacionais secretos em suas reportagens, sabendo que nesta era de alta conectividade virtual eles poderiam ser vistos e usados por insurgentes.

Em geral, os julgamentos são penosos. Matérias sensíveis não caem em nossas mãos. Elas começam com alguma pista de uma fonte que tem um agravo ou uma consciência culpada, mas essas pistas são apenas o começo de um trabalho longo e exaustivo.

Os repórteres operam sem passes de segurança, sem poderes de intimação, sem tecnologia de espionagem.

Eles trabalham com fontes que podem estar assustadas, que podem saber apenas uma parte da história, que podem ter suas próprias agendas que precisam ser descobertas e levadas em conta.

Nós verificamos duas, três vezes. Procuramos fontes com outros pontos de vista. Questionamos nossas fontes quando surgem informações contraditórias.

Então ouvimos. Nenhum artigo sobre um programa classificado é publicado até que autoridades responsáveis tenham tido uma justa oportunidade de comentar.

E se elas querem argumentar que a publicação representa um risco para a segurança nacional, deixamos as coisas de molho e lhes concedemos uma audiência respeitosa.

Com freqüência, concordamos em participar em conversas off-the-record (conversas privadas protegidas pelo compromisso de não publicação) com autoridades, para que elas possam defender seu ponto de vista sem medo de vazar mais segredos para nossas primeiras páginas.

Por fim, pesamos os méritos de publicar contra os riscos de publicar.

Não há uma fórmula mágica, não há uma medida clara seja para o interesse público, seja para os perigos de publicar informações sensíveis. Fazemos nosso melhor julgamento.

Quando decidimos pela publicação, é claro, todos ficam sabendo daquilo. Poucas pessoas ficam sabendo quando decidimos segurar uma matéria.

Mas cada um de nós, nos últimos anos, teve a experiência de reter ou retardar matérias quando a administração nos convenceu de que o risco da publicação suplantava os benefícios.

Provavelmente, o exemplo mais discutido foi a decisão do "The New York Times" de segurar sua matéria sobre a escuta telefônica ilegal por mais de um ano, até os editores sentirem que outras reportagens haviam enfraquecido a justificativa para segredo da administração.

Mas há outros exemplos.

"The New York Times" reteve matérias que, se publicadas, poderiam ter colocado em risco os esforços para proteger depósitos vulneráveis de material nuclear, e matérias sobre iniciativas altamente sensíveis de contraterrorismo que ainda estão em operação.

Em abril, "The Los Angeles Times" reteve informações sobre atividades americanas de espionagem e vigilância no Afeganistão descobertas em discos rígidos de computador comprados por repórteres num bazar afegão.

Nem sempre a questão é publicar uma matéria ou eliminá-la.

Às vezes, lidamos com as preocupações de segurança removendo, na edição, detalhes gratuitos que pouco contribuem para a compreensão pública mas poderiam ser úteis para os alvos da vigilância.

"The Washington Post", a pedido da administração, concordou em não nomear os países específicos que têm prisões secretas da Agencia Central de Inteligência (CIA), considerando essa informação não essencial para leitores americanos.

"The New York Times", em seu artigo sobre a escuta clandestina pela Agência de Segurança Nacional (NSA), deixou fora alguns detalhes técnicos.

Mesmo as matérias sobre os bancos, condenadas pelo presidente e o vice-presidente, não abordaram os aspectos técnicos ou operacionais do programa, mas sua extensão, as questões sobre sua base legal, e as questões de supervisão.

Compreendemos que pessoas honradas possam discordar de algumas dessas escolhas - publicar ou não publicar.

Mas tomar essas decisões é a responsabilidade que recai em editores, um corolário da grande dádiva da nossa independência.

Não é uma responsabilidade que assumimos levianamente. E não é uma que podemos entregar ao governo.


Data: 05/07/2006