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O jogo, a arte e a vida - Discurso

Discurso proferido pelo Vice-reitor da UFCG, professor José Edílson de Amorim, durante a solenidade de Colação de Grau das turmas do Período 2005.2, do CCT, CEEI e CTRN, ocorrida na noite desta quarta-feira, 21, no auditório do Colégio das Damas, em Campina Grande.

 

“Quero lhes falar sobre algumas formas de conhecer. Farei isso a partir de três atitudes que passo a descrever:

1. Gary Gasparov é um russo desde muito jovem campeão mundial de xadrez. Esse jogo é fascinante e infinitamente aberto às possibilidades do pensamento e da criatividade. Gasparov alcançou um nível tão alto e um domínio tão profundo desse jogo a ponto de disputar, registrando vitórias, com os mais sofisticados computadores concebidos para jogar xadrez em nível avançado.
Pois bem; mesmo aclamado e reconhecido como o mais brilhante enxadrista, Gasparov afirmou, em mais de uma ocasião, que não pode ver um manual de xadrez para principiantes que não compre e leia com renovado interesse; ele disse que não pode passar por uma banca de revista que não pare em busca desses manuais elementares.

Essa atitude revela algo mais que humildade; revela sabedoria. Muitas pessoas, frequëntemente, ao atingirem um grau mediano de conhecimento de determinada matéria, superestimam esse conhecimento e menosprezam os ensinamentos elementares, desdenhando das primeiras lições como se tivesse sido possível chegar a algum lugar sem elas. Essa atitude presunçosa é um erro que cometemos muitas vezes; é um mau costume que devemos evitar.

A lição de Gasparov quer comunicar que devemos reter para nós as lições fundamentais que tivemos a oportunidade de compreender. Mais das vezes, o conhecimento sofisticado falha porque não soube observar um princípio elementar por descuido esquecido.

Conhecimento, portanto, significa reter na base da nossa experiência as primeiras lições que aprendemos para que possamos retornar a elas sempre que necessário. Conhecer é recordar e a recordação não significa somente rememorar – recordação significa recolocar novamente no coração; reativar a sensibilidade para que esta não seja embotada pela mera racionalidade.

A propósito, em antigos livros didáticos uma das etapas pedagógicas era justamente a recordação.

Muitas vezes, seduzidos pelo modismo intelectual, vamos buscar longe, e mal assimilamos, teorias e fórmulas de prestígio acadêmico; mas não cuidamos do que está ao nosso alcance com um potencial impressionante de sabedoria e de sentimento para nos comunicar. Com os lhos nos Andes, não enxergamos o caminho em que andamos e deixamos de aprender o que ele nos oferece de beleza e de informação.

Conhecer é recordar. É essa a lição que o gesto de Gasparov quer nos ensinar.

2. Em 1988, foi publicado no Brasil um livro muito bonito do escritor Ítalo Calvino – Seis propostas para o próximo milênio. Entre as coisas cativantes desse livro, me lembro de uma história chinesa que ele conta: um rei chinês solicitou ao mais conceituado pintor do reino que pintasse um caranguejo; certamente, pelo fascínio que este animal lhe despertou; certamente, porque o rei percebeu nesse crustáceo a expressão mais acabada de perfeição animal, a articulação mais singular dos elementos água, terra e ar.

O pintor expôs suas condições prontamente aceitas pelo rei: pediu uma casa, doze empregados e cinco anos para concluir a tarefa; passados os cinco anos, o pintor compareceu ao rei, disse que não concluíra a pintura e pediu mais cinco anos com as mesmas condições. Ao se completarem os dez anos, em um momento de fulgurante inspiração, o pintor produziu, com rara perfeição, num instante, a imagem impecável de um caranguejo.

Esse gesto não pode ser entendido como mera inspiração desgarrada de uma experiência acumulada. Nem como mero requinte ou excentricidade. O talento e a técnica expressos no gesto final do pintor revelam que o conhecimento carece, para se exercer com eficiência, de tempo, de condições materiais favoráveis e de uma paciência obstinada. Carece, enfim, da vontade e da determinação convertidas em trabalho.

Na aventura do conhecimento, agilidade e paciência não se opõem, antes se completam. Conhecimento é maturação.

3. Numa avaliação geral de uma disciplina que ministrei, uma aluna contou que colocara sua filha de castigo, numa tarde, porque a menina não fizera a tarefa escolar. O castigo aplicado rezava que a menina ficasse no quarto, sem ver televisão, até fazer o dever de casa. Assim se cumpriu. Quando o pai da menina chegou, à tardinha, a menina foi liberada e, à mesa do jantar, indagou: – Pai, a pessoa pode ser castigada por uma coisa que não fez? Não, minha filha! Isso é uma injustiça! – Pois mainha me deixou de castigo, hoje, porque eu não fiz a tarefa da escola!

A atitude dessa menina, se interpretada parcialmente, pode ser entendida, somente, como vivacidade, como manipulação retórica da fala, que se converte em sofisma, com a intenção de lograr o interlocutor e transformar a falta em virtude.

Mas não devemos tirar da fala dessa criança apenas o conteúdo interesseiro e pragmático da esperteza infantil. Todo o gesto da garota, nesse dia, nos transmite uma sabedoria muito grande. Vejam bem: ela não argüiu com a mãe sobre sua falta; ela obedeceu, refletiu e argumentou, utilizando em seu ardil os elementos fornecidos pela lógica dos adultos, com quem aprendera. Ela demonstrou que o conhecimento sobre as relações entre as pessoas somente nos chega após disciplina, paciência, capacidade de pensar e habilidade de argumentar. Tenho certeza de que essa menina nunca vai esquecer a lição que teve oportunidade de protagonizar nessa tarde. Isso se chama sabedoria.

São essas as sugestões que gostaria de comunicar aos jovens que agora concluem seu curso universitário. E vocês concluíram para seguir adiante. Vocês estão apenas começando.
Espero que vocês nunca esqueçam a sabedoria das crianças.

Muito obrigado pela paciência."


Data: 22/06/2006