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O Terceiro Mundo adota a alta tecnologia

A estrada não pavimentada que leva à super-rodovia da informação

As corporações que se especializam em tecnologia da informação descobriram um novo mercado - os países pobres. Mas a alta-tecnologia muitas vezes já está lá, e as inovações do Terceiro Mundo poderão estar em breve disponíveis no mundo desenvolvido.

O computador do futuro é como um animal de estimação: sempre querendo ser alimentado - semelhante a um Tamagotchi tamanho família. Caso contrário, ele causa problemas.

Após dez horas em frente ao monitor, o usuário precisa se dirigir rapidamente até o quiosque mais próximo, comprar um novo cartão pré-pago, raspá-lo para expor o código e digitar a combinação.

Aqueles que não o fazem são advertidos pelo computador, que pede gentilmente que paguem a taxa. Finalmente a máquina perde a paciência e começa gradualmente a suspender as suas funções - até que praticamente nenhuma delas funcione mais. Quando se chega a tal ponto, a única coisa a fazer é correr até o quiosque.

O próximo computador mais vendido do mundo poderá ser mais ou menos como a máquina descrita acima - pelo menos de acordo com a Microsoft Corporation. "Flexgo" é o nome do novo sistema de pagamento, e a intenção é fazer com que o Windows seja acessível para os pobres nos países em desenvolvimento.

Este computador conectado à Internet funciona da mesma forma que um telefone celular. Subsídios ajudam a manter o preço baixo, que forma que ele possa ser vendido por apenas US$ 300 - cerca da metade do preço normal.

No entanto, o uso do computador custa dinheiro, que o indivíduo geralmente paga gradualmente, por meio de cartões pré-pagos.

Isso até que um dia o computador passe a pertencer ao usuário - contanto que os pagamentos tenham sido feitos em dia. Aqueles que não pagam são punidos. O computador simplesmente pára de funcionar.

Por ora, os computadores Flexgo só podem ser adquiridos no Brasil, mas México, Rússia, Índia e China devem seguir o exemplo nos próximos meses. E isso representa uma mudança surpreendente de curso para a Microsoft.

Recentemente, no mês de março, a Microsoft zombava do laptop de US$ 100 desenvolvido pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês) para as crianças no Terceiro Mundo.

A Microsoft argumentava que os telefones celulares, e não os computadores pessoais, se constituem na melhor maneira de fazer com que os pobres tenham acesso ao mundo digital.

A mudança de rumo provavelmente é motivada principalmente pela pequena diferença existente entre os sistemas operacionais dos dois computadores. Ao contrário dos laptops de US$ 100 do MIT, os computadores Flexgo não utilizam o sistema Linux, que é gratuito, e sim uma versão do Windows.

O futuro da alta tecnologia: Brasil, Rússia, Índia e China E não é só a Microsoft que está de olho nas carteiras dos pobres. A Dell Corporation já desenvolveu um computador pessoal barato para a Ásia, e a IBM está cortejando usuários de softwares Linux no Brasil.

A Nokia e a Motorola estão provocando reduções mútuas de preços com o lançamento de telefones celulares nos países subdesenvolvidos, adquiridos sem que se assine um contrato - por preços que variam entre 30 euros (US$ 39) e 50 euros (US$ 64).

Quem também argumenta que os pobres do mundo não podem ser esquecidos pelo setor de alta tecnologia é Arun Sarin, diretor-executivo da Vodafone, que fez o discurso de abertura na feira comercial CeBit deste ano.

O homem que lidera a maior companhia de telefonia celular do mundo adora falar sobre os "Bric". Embora o termo pareça ser um novo exemplo de jargão do setor de alta tecnologia, o acrônimo na realidade se refere aos quatro países (e mercados): Brasil, Rússia, Índia e China.

Sarin defende a redução da lacuna digital - por razões empresariais, e não filantrópicas. E os negócios estão indo surpreendentemente bem, até mesmo nas regiões mais pobres do mundo.

Na África, por exemplo, as pessoas com freqüência compartilham telefones celulares, ou vendem os minutos de telefonia celular aos vizinhos ou transeuntes.

Em Bangladesh, os chamados "telefones de aldeia" geram mensalmente, cada um, uma tarifa de US$ 90. Em alguns casos, tal cifra chega a US$ 1.000 - uma tarifa que até mesmo os piores viciados em telefone celular do mundo desenvolvido têm dificuldade em criar.

O economista norte-americano C.K. Prahalad há muito tempo defende que se pense a alta tecnologia como uma forma de auxílio ao desenvolvimento. No seu livro "The Fortune at the Bottom of the Pyramid" ("A Fortuna na Base da Pirâmide") Prahalad fala sobre a necessidade de que se deixe de ver os pobres como vítimas, ou como um peso para a sociedade.

Para ele, quatro bilhões de pobres são a chave para o próximo estágio de comércio e prosperidade.

Os preços acessíveis são um fator decisivo Prahalad conquistou fama como professor da Universidade de Michigan, e é considerado um dos mais influentes gurus do gerenciamento em todo o mundo.

Segundo ele, os mercados que possuem o maior potencial para crescimento não serão encontrados no Primeiro Mundo, mas sim nos países em desenvolvimento.

E a sua hipótese central faz sentido: a indústria da alta tecnologia não pode manter a sua expansão caso continue a vender para apenas 2,5 milhões de consumidores ricos.

A maioria dos potenciais consumidores - aqueles quatro bilhões de indivíduos que vivem com menos de US$ 2 por pessoa por dia - fica fora das possibilidades deste mercado.

Prahalad explica que, juntos, a China, a Índia, o Brasil, o México, a Rússia, a Indonésia, a Turquia, a África do Sul e a Tailândia são responsáveis por uma enorme produção econômica.

Porém, Prahalad argumenta que um fator decisivo para o sucesso das vendas nos países em desenvolvimento são os preços acessíveis. O pagamento flexível escalonado e o crédito aos consumidores de pequena escala permitem que até mesmo os diaristas utilizem produtos de alta tecnologia.

O modelo empresarial de Prahalad conta com pelo menos um seguidor proeminente. Segundo Bill Gates, o professor está oferecendo "um modelo interessante para o combate à pobreza com lucro". Os novos computadores Flexgo da Microsoft seguem esse modelo de perto.

Mas os especialistas econômicos advertem para os riscos de inundar os países em desenvolvimento com bugigangas. Embora os consumidores do Terceiro Mundo muitas vezes só contem com rendimentos baixos e irregulares, as suas expectativas com relação à qualidade e à robustez dos equipamentos são freqüentemente elevadas.

E, surpreendentemente, os pobres são grandes conhecedores das marcas dos produtos, diz Prahalad.

Em Bangladesh, por exemplo, alguns usuários dos "telefones de aldeia" gastam surpreendentes 7% dos seus rendimentos com comunicação.

"Quando um consumidor gasta o dinheiro ganho em um mês na compra de um telefone, é claro que ele prestará muita atenção na qualidade do produto", afirma David Taylor, da Motorola.

E os líderes da indústria global da alta tecnologia muitas vezes encontram uma concorrência surpreendentemente forte no âmbito local - por exemplo, sob o telhado de palha da cabana de Padmavathi.

Quatro vacas e um computador

Uma mulher vivaz que mora na região indiana de Tamil Nadu - na qual as pessoas com freqüência não possuem sobrenomes -, Padmavathi tem uma cabana que durante as tardes fica freqüentemente cheia de aldeões que desejam participar da revolução digital.

Alunos da escola fundamental clicam o mouse pelas páginas de livros virtuais. Mães jovens baixam da Internet certidões de nascimento. Fazendeiros vendem as suas colheitas de amendoim por meio de um clique de mouse, ou consultam especialistas em agricultura em videoconferências.

Poucos anos atrás, Padmavathi pegou dinheiro emprestado em um banco a fim de acrescentar um computador ao seu patrimônio, composto basicamente de quatro vacas e uma horta.

Ela usa o computador para acessar a Internet, e o disponibiliza a outros por um preço - a renda é utilizada para o pagamento da dívida contraída junto ao banco.

Esse modelo empresarial só se tornou possível devido a uma nova conexão local com a Internet conhecida como Cordect. Pelos padrões europeus, essa "Indianet" não passa de uma solução provisória improvisada e relativamente lenta, uma espécie de estrada não pavimentada que leva à super-rodovia da informação.

A tecnologia básica é a mesma utilizada nos telefones sem fio - a única diferença é que a estação-base não fica na sala ao lado, mas a vários quilômetros de distância.

E como as interrupções do fornecimento da energia elétrica são comuns no interior, há uma bateria capaz de atender à demanda dos cibercafés por até quatro horas, em caso de falta de luz.

A Cordect foi desenvolvida pelo Instituto Indiano de Tecnologia e está se transformando em um verdadeiro sucesso de vendas no interior do país.

Companhias de telecomunicações de outros países, como a África do Sul, a Tunísia, o Iêmen e o Cazaquistão já estão apostando na nova tecnologia da Internet - até mesmo a Microsoft se interessou.

Em fevereiro, a gigantesca corporação anunciou que investiria cerca de US$ 1,7 bilhão a fim de cobrir o subcontinente com uma rede de 50 mil cibercafés durante os próximos quatro anos - uma rede que não só conectará as cidades prósperas, mas que foi propositalmente projetada para se estender até as áreas rurais pobres.

Isso significa que provavelmente haverá uma intensa competição entre a Microsoft e a concorrente local Cordect, que já forneceu acesso à Internet a dez mil vilas indianas.

O exemplo demonstra que a maioria da população mundial pode não contar com um bom padrão de vida, mas espera serviços de qualidade.

A Microsoft passou dois anos conduzindo pesquisas intensivas de mercado que envolveram a instalação de 300 cibercafés de teste, a fim de se acostumar aos números específicos do mercado local.

Transferência monetária por telefone celular Às vezes são os próprios indivíduos pobres que têm novas idéias empresariais. Em países como Tanzânia e Quênia, o telefone celular está a ponto de revolucionar o setor bancário.

Na África, os telefones celulares já são usados como carteiras eletrônicas, substituindo as contas bancárias - um modelo que fracassou em países ocidentais como a Alemanha, a despeito das tentativas seguidas de implementá-lo.

A solução africana é simples. Todos os tipos de quantias - na forma de créditos telefônicos - são transferidos por mensagens de texto. Se alguém deseja comprar batatas, por exemplo, basta disponibilizar a quantia correspondente do seu crédito telefônico para o comerciante da esquina, enviando-lhe o código de acesso, que funciona como uma moeda eletrônica virtual.

Até mesmo camponeses pobres, que sequer possuem uma conta bancária, são capazes de fazer transferências monetárias dessa maneira. Enviar dinheiro à família em uma vila distante, por exemplo, não se constitui mais em um problema.

Para que se atinjam os consumidores pobres é necessário um conhecimento exato das condições locais. No melhor dos casos, esse tipo de know-how permite a alguns países em desenvolvimento fazer a transição de mero consumidores a centros de inovação que, em certos casos, são capazes até mesmo de superar as nações ricas do Hemisfério Norte.

O Brasil se constitui em um exemplo impressionante. Enquanto as velhas máquinas mecânicas de votação transformaram as eleições dos Estados Unidos de 2000 em uma balbúrdia, todos os 110 milhões de eleitores brasileiros que participaram de uma eleição ocorrida naquele mesmo ano puderam votar eletronicamente.

"UE2000" é o nome do milagre tecnológico do mundo em desenvolvimento - uma caixa branca que parece um pequeno computador e que é suficientemente robusta para funcionar até mesmo na Amazônia, onde a umidade atmosférica chega a 90%.

É improvável que algum outro país tenha contribuído mais para a digitalização das eleições do que o Brasil. Cerca de 400 mil urnas eletrônicas estão atualmente em uso no país, e elas também foram utilizadas em outros países, da Argentina ao México.

Do Terceiro Mundo ao Ocidente

As filas sem fim em frente aos centros de votação se tornaram, em grande parte, uma coisa do passado, segundo Paulo Camarão, chefe do departamento de tecnologia de informação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) do Brasil.

"Cada eleitor necessita de cerca de 25 segundos para votar", explica Camarão com orgulho. "Tanto o número de abstenções quanto o de votos inválidos declinou dramaticamente", afirma Camarão.

Este desenvolvimento rápido implica em novos desafios para as corporações ocidentais com as suas máquinas caras.

Os especialistas advertem que os novos produtos baratos podem ser um tiro pela culatra para os países desenvolvidos. Um artigo publicado pela empresa de consultoria McKinsey alerta que esse efeito poderá em breve se alastrar pelo mundo inteiro.

Ultimamente, muitos produtos originalmente desenvolvidos para os pobres se tornaram atraentes para os consumidores nas nações ricas, fazendo com que os preços dos produtos de alta tecnologia caíssem ainda mais rapidamente.

Por exemplo, a maior fabricante mundial de computadores pessoais, a Dell, desenvolveu um computador pessoal de preço baixo para os países em desenvolvimento, o chamado "Smart PC".

Uma máquina similar está atualmente disponível para os consumidores norte-americanos que procuram economizar dinheiro.

As pessoas ligadas ao setor já estão especulando que, após fazer a sua estréia no Brasil, na Índia e no México, e triunfar nestes países, o computador barato Flexgo da Microsoft poderá acabar sendo vendido nas lojas de computação alemãs - como um computador de preço reduzido para crianças cujos pais já contam com os seus próprios computadores convencionais.


Data: 02/06/2006