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O novo vôo do ex-astronauta - Artigo

"É preciso assegurar uma retribuição adequada por parte de quem foi beneficiado diretamente por um programa como esse"

Roberto Macedo - Economista (USP), com doutorado pela Universidade Harvard (EUA), pesquisador da Fipe-USP e professor associado à Faap, foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda

 

Marcos Pontes, o primeiro astronauta brasileiro, penetrou também no espaço da polêmica, tanto lá no céu como aqui na terra. Seu histórico vôo foi alvo de muitas críticas, inclusive minhas (O vôo do 'caronel' Pontes, 6/4).

No conjunto, elas se voltaram para o papel de Pontes na missão espacial de que participou - nada ativo em termos de pilotagem -, para a relevância científica dos experimentos que rapidamente fez no espaço e para a proporção entre os custos e os benefícios da empreitada.

Pelas mais variadas razões, inclusive para proveito político do presidente-candidato, o governo e parte da mídia se esforçaram por atribuir a Pontes a condição de herói nacional. Assim foi recebido por construtores dessa imagem e pelos convertidos pelo evangelho que a pregou.

Em resposta às críticas, o presidente da Agência Espacial Brasileira (AEB), Sérgio Gaudenzi, afirmou ser preciso esperar pelos resultados.

Eles viriam do impulso que Pontes, ungido pela missão, daria ao programa espacial brasileiro, na condição de seu grande ícone e defensor. Ou garoto-propaganda, na linguagem da publicidade, ou lobista, na do jogo da defesa de interesses junto ao governo.

Defesa semelhante foi feita por autoridades do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), interessado nos resultados científicos do programa.

Menos de dois meses depois de baixar à terra, Pontes decidiu passar para a reserva, fazendo isso aos 43 anos, um excelente desempenho também na corrida nacional por aposentadorias precoces, uma das grandes distorções do sistema previdenciário brasileiro.

Segundo reportagem deste jornal sobre o assunto, a decisão "... caiu como um balde de água fria entre os defensores da viagem de Pontes ao espaço, principalmente a AEB e o MCT".

Paralelamente, a forma como a notícia foi divulgada, com manchetes do tipo Astronauta vai para a reserva e agora poderá cobrar por palestras e Astronauta de mercado - Pontes sai da Aeronáutica e vai poder cobrar por palestras, veio em prejuízo de sua imagem.

Seja como palestrante ou em outras atividades, como a de motivar estudantes de escolas públicas, na qual Pontes disse pretender se engajar, terá agora de lidar com questões para as quais não foi treinado, como essa da imagem.

Ela já entra arranhada nos seus novos caminhos, conforme revelado por pesquisa deste jornal, em que 73% de 2.690 entrevistados não acharam correto ele ter passado à reserva, o que poderá fechar algumas portas pelas quais pretende ingressar.

Pontes afirma que exerceu um direito, que continuará ajudando o programa espacial brasileiro - entre outras formas, fazendo a ponte entre esse programa e a indústria brasileira - e que não tinha mais perspectivas de progredir na carreira em que se encontrava.

Nesta, ao se concentrar em atividades extraordinárias, afastou-se das típicas que poderiam levá-lo a postos mais avançados na Aeronáutica, como o indispensável curso na Escola de Comando e Estado-Maior dessa Arma.

De qualquer forma, lembrando o que dizia o economista Celso Furtado a respeito de vários episódios da história econômica brasileira, o caso é mais um em que há privatização de benefícios e socialização de prejuízos.

Segundo o noticiário, o custo da missão alcançou US$ 10 milhões, sem contar os dos vários anos em que Pontes foi preparado para essa missão espacial e outras para as quais foi cogitado.

Em retrospecto, falharam os administradores do programa espacial brasileiro, que não protegeram o investimento público desse risco que agora se materializou. Na área educacional, riscos semelhantes são há muito tempo previstos e administrados.

Há décadas estudantes e professores beneficiados com bolsas de estudo assumem formalmente o compromisso de se manterem ligados a atividades de docência e pesquisa por um período pelo menos igual àquele em que fruíram os benefícios dessas bolsas.

Em geral, elas incluem despesas de manutenção, anuidades escolares - estas comuns em cursos no exterior - e o próprio salário quando o bolsista se afasta de suas atividades usuais, mas mantém o vínculo empregatício durante o período de estudo. Em caso de infração, a punição envolve a devolução dos recursos recebidos, no todo ou em parte.

Compromissos como esses são também firmados no âmbito das empresas. Em qualquer caso, a idéia é assegurar ao menos em parte o retorno do investimento realizado por quem concedeu a bolsa e/ou pelo empregador que manteve o salário.

Trata-se, assim, de uma forma de seguro contra prejuízos, cautela que não foi tomada pelas autoridades do governo brasileiro ligadas ao assunto.

Não creio, entretanto, que um simples documento entre as partes fosse suficiente para evitar que Pontes fosse privado do direito à reforma. Tudo indica que para evitar casos semelhantes será necessário introduzir legislação específica.

Não se trata de exigir que uma pessoa mantenha seu vínculo empregatício por um tempo suficiente para retribuir adequadamente uma "bolsa" que custou mais de US$ 10 milhões.

Isso seria impossível, em particular porque em casos como esse os benefícios, se vierem, terão primordialmente como fonte o programa como um todo, e não tanto o trabalho individualmente realizado.

Em qualquer caso, é preciso assegurar uma retribuição adequada por parte de quem foi beneficiado diretamente por um programa como esse.

Isso para assegurar um mínimo de retorno e evitar que resultados de um grande investimento público sejam tão imediatamente apropriados por quem logo depois dele quer partir para outro vôo, de rumos ditados exclusivamente pelo interesse pessoal.


Data: 01/06/2006