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Desde pequenas, meninas já consideram a engenharia uma atividade só para meninos, diz estudo

Pesquisa feita com crianças, pais e professores no Brasil, na Argentina e no México mostra como incentivos diferentes começam a limitar a igualdade de oportunidades para homens e mulheres desde a infância

 

Elas não têm nem dez anos, mas já repetem a ideia de que "engenharia é coisa de menino". De acordo com um estudo da Cátedra Unesco Mulher, Ciência e Tecnologia na América Latina (Flacso-Argentina) apresentado nesta sexta-feira (9), nove em cada dez meninas com entre 6 e 8 anos associam a engenharia com afinidades e destrezas masculinas.

 

O levantamento ouviu 360 meninos e meninas de 6 a 10 anos, 480 pais e mães e 780 professores de escolas públicas e privadas para analisar como os esterótipos condicionam o vínculo das meninas com a ciência e a tecnologia desde a infância no ambiente familiar, educacional e cultural.

 

As entrevistas foram feitas pela associação civil Chicos.net e pela cátedra da Unesco por meio de questionários pela internet e grupos focais presenciais em São Paulo, Buenos Aires e Cidade do México entre abril e outubro de 2017, e patrocinadas pela Disney Latino-América.

 

A única menina da sala

 

Na casa da consultora de mídias sociais Liliane Ferrari, não existem atividades com gênero pré-definido. Sua filha única, Luísa, hoje com 11 anos, já experimentou um pouco de tudo, mas, há dois anos, descobriu a programação, e não largou mais. "Eu já botei no balé, já fiz todas essas atividades. Chegou no momento que era mais legal fazer programação porque era mais útil", explicou ela.

 

"Um dia estava lendo, vi que tinha uma aula experimental de programação para crianças, perguntei se ela queria ir e ela disse que sim", diz Liliane. Mas nem todas as famílias reagiram da mesma forma, relembrou ela.

 

"Quando cheguei lá foi impressionante a imagem que eu vi. Tinha uma mãe com crianças gêmeas, um menino e uma menina. A mãe colocou o menino na aula, a menina ficou esperando com a mãe", contou Liliane.

 

"Eu fiquei tão chocada com aquilo, por que ela não fez aula experimental? A mãe meio que tachou isso. Apesar de a gente estar vivendo uma coisa tão sem fronteiras, a gente ainda vê muito esse comportamento."

 

Baixo incentivo em casa e na escola

 

De acordo com a pesquisa divulgada nesta sexta, parte dos pais acredita que a baixa participação das mulheres nas disciplinas de ciência e tecnologia obedece ao gosto pessoal das meninas. Porém, 32% dos pais acreditam que as meninas recebem poucos estímulos, tanto em casa quando na escola, para se interessar e vincular com essas disciplinas.

 

Os dados mostram ainda que 53% dos pais e mães entrevistados em São Paulo acham que meninos e meninas têm rendimentos diferentes em pelo menos uma disciplina nas áreas de ciência, matemática e informática.

 

Segundo Marcela Czarny, diretora da associação Chicos.net, a pesquisa mostra que a desigualdade de gênero impõe barreiras desde a infância.

 

"Existe uma brecha de gênero que atualmente coloca as meninas em piores condições que os meninos para aproveitar e participar dos avanços da ciência e a tecnologia", afirmou Marcela.

 

Gloria Bonder, diretora da Cátedra Regional Unesco Mulher, Ciência e Tecnologia na América Latina, diz que, "em contextos marcados pelos processos de mudanças vertiginosas a nível social, econômico e cultural os estereótipos e viés de gênero se flexibilizaram, mas também persistem barreiras que condicionam os interesses e o desempenho escolar de mulheres e homens".

 

Ela recomenda a adoção de programas que atuem nas "transformações educacionais e culturais para a plena participação de mulheres e homens na inovação científica e tecnológica".

 

Já Belén Urbaneja, diretora de Cidadania Corporativa e Gerenciamento de Marcas da Disney na América Latina, diz que a pesquisa ajuda a "entender como as meninas se vinculam com a ciência, tecnologia, engenharia e matemática desde idades precoces e que ferramentas os pais e educadores precisam para estimulá-las nesse caminho".

 

Estímulo x repressão

 

As crianças ouvidas pela pesquisa ainda não associam as disciplinas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática com profissões, mas sim com atividades, como experimentos em um laboratório, o uso de computadores, a construção de prédios e o ensino de cálculos e números, respectivamente. Porém, as crianças concorda que quem se dedica à ciência, à matemática ou à engenharia são pessoas "inteligentes e importantes". Já os tecnológicos são vistos como pessoas "comuns" que gostam de usar dispositivos tecnológicos.

 

Os pais, por sua vez, afirmaram, em sua maioria, que recomendariam aos filhos que seguissem suas inclinações. "O número de pais e mães que tentariam evitar a decisão de seus filhos(as) com argumentos sustentados em estereótipos de gênero é muito baixo", diz o estudo.

 

No entanto, enquanto 88% deles defenderam essa afirmação sobre atividades escolhidas pelas filhas meninas, a maioria cai quando o assunto é permitir que os filhos meninos sigam atividades historicamente vinculadas às meninas. Nesse caso, 20% dos pais afirmam que tentariam evitar essa decisão de seus filhos.

 

Para o engenheiro T. F., que é casado e tem dois filhos meninos de até cinco anos, os números indicam que existe uma pressão das famílias que ainda não estão num momento de refletir e desconstruir alguma ideia de estereótipos de gênero. "Então eles mesmos vão reforçar que a menina tem que brincar de cozinha, ou que brincar de carrinho ou brincar de bola é coisa que só menino faz."

 

Na casa dele não há crianças do sexo feminino, mas há uma casinha de madeira, onde os dois filhos meninos brincam de fazer comida e de cuidar da casa.

 

"Meninos que querem fazer coisas 'de menina', que querem fazer balé, ou estudar música, coisas que a sociedade dita como coisa 'de menina', eles são veementemente taxados e julgados e punidos pelos seus pais, justamente por causa desse machismo que existe entranhado na sociedade", diz ele, que pediu para não ser identificado para que sua família não sofra ameaças.

 

"É o machismo e a misoginia que sempre vai determinar que a mulher é inferior ao homem, mais fraca, e que, portanto, coisas determinadas como apenas para mulher são coisas ruins porque detonam fraqueza, e nenhum homem, nenhum pai, nenhuma mãe, quer que o seu filho seja fraco."

 

O engenheiro diz que sofreu uma pressão parecida quando era criança. "Eu tive essa influência também, desde criança, de que pessoas que são engenheiras são mais bem sucedidas, mais inteligentes e tudo o mais, acho que é uma coisa que se reforça muito dentro de casa."

 

Agora que tem seus próprios filhos, ele decidiu seguir outro caminho. Na casa dele, não existe divisão sexual de tarefas.

 

"Eles têm um modelo de pai que não segue esse padrão heteronormativo, machista, do patriarcado, que é o cara que só trabalha fora. Eles vêem o pai em casa, cuidando deles, dando banho, dando comida, fazendo tudo o que a mãe faz, cuidando da casa também, limpando, lavando louça, sem que a esposa fique toda hora pedindo.

 

Programação de games

 

Luisa contou ao G1 que aprendeu a lógica de programação em bloco, como a plataforma Blockly, usada para a iniciação de crianças na área. "Eu aprendi a fazer alguns jogos com a programação em bloco, é a lógica de programação. O programa faz o que você mandou ele fazer. Eu sei fazer jogos como se fosse para um labirinto: você controla o personagem para ele chegar até certo ponto. E sei fazer jogos de plataforma."

 

Em seu primeiro curso, onde aprendeu a base da programação, Luisa chegou a ser a única menina na sala durante um tempo, até uma segunda entrar na turma. Atualmente, os dois cursos que ela frequenta – um de programação de games às sextas e outro de computação gráfica aos sábados – são abertos a alunos de várias idades. "Tem uma menina, que é uma moça com uns 18 anos. Do resto, a maioria é sempre homem, sempre é menino", diz Liliane.

 

A garota diz que nunca sofreu com piadinhas por ser minoria entre meninos, e que conversa bastante com a outra menina do seu curso de games na sexta, que tem a sua idade, mas nem tanto com a jovem de 18 anos de seu curso de computação gráfica. Com os meninos, porém, ela afirma que não costuma conversar.

 

Na escola, ela também diz que tem pouco costume de brincar com meninos. "Mas às vezes converso com eles. É porque os meninos são mais chatos", comentou Luisa.

 

Liliane entende que sua família vive uma exceção – Luisa, além de se interessar por programação, também é fã de matemática, e é uma das pessoas com a nota mais alta na disciplina na escola. Mãe e filha também tentaram convidar as colegas da garota para aulas experimentais de programação, mas o convite, em geral, é recusado.

 

(G1)


Data: 12/03/2018