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Artigo - O flecheiro de Dedé

Wagner Braga Batista*

 

Dramas são inigualáveis. Incomparáveis. O egoismo, peculiar de seres humanos, impede-nos de reconhecer a grandeza do alterdrama. Condena-nos a vivenciar, exclusivamente, nossas minusculas tragédias. Fora deste horizonte restrito, a desgraça alheia pouco importa.

 

O futebol é o único espaço socializador. Em que pesem exceções, universaliza nossas tragédias.

Nelson Rodrigues, reacionário traído por seus próprios dramas, alertáva-nos. Uma simples  pelada de varzea é muito mais dramática do que qualquer tragédia shakespeariana.

 

Discorrendo sobre a genealogia das tragédias futebolisticas, acrescentaremos uma reflexâo.

 

Há dois tipos de tragédias. As que conduzem à apoteose, à comoção e à solidariedade. São tragédias magnânimas, compartilhadas e coletivas. Acometem gregos e troianos, tricolores e urubus, tubarões e cardumes de bagrinhos. Mas há também tragédias, miúdas, definitivas e solitárias. Não despertam gestos de apreço e, muitas vezes, causam desdém.

 

 Isto dito, vamos à narrativa.

 

Nas peladas, o  inquestionável drama coletivo é a derrota, condimentada pelo juiz ladrão, pelos frangos do goleiro e pelo gol do adversário, no apagar das luzes. Tragédias individuais não contam. Não são contabilizadas assim como na educação bancária, em avaliações fraudulentas do INEP, nem são capitalizadas pelo marketing do ensino superior, financiando pelo FIES. Imergem sob conceitos númericos, previsões astrológicas e patriotadas. Diversamente de arroubos da educadora pátria, não contam em estatisticas de governo, nem em notícias de jornais. Tampouco, na  dialética das peladas.

 

Pois bem, nos idos de 1970, uma fatídica pelada às margens do Bodocongó, apresentou-nos  Dedé e dindim.

 

José Pereira, não o bloco carnavalesco, mas o servidor público exemplar, diligente e atencioso é um eterno desconhecido. Mas Dedé, incondicional defensor de seus pares, arguto estudioso da legislação trabalhista, dos labirintos e armadilhas da administração é mais conhecido que chuchu na feira. Trata-se desta unanimidade, benquista por todos os balcões, arquivos e integrantes desta saudável UFCG. Desde que o conheçco, Dedé não mudou de endereço. Mora nas cercanias da SRH.

 

Pois é, a fatidica pelada do Bodocongó reservou-nos  duas modalidades de tragédias.

 

Dedé vivenciou a apoteótica tragédia coletiva. E eu, a inglória tragédia. Fomos selecionados pelo destino, por externalidades da pelada. Pelo flecheiro de Dedé e por maldito dindim.

 

A narrativa de hoje, fixa-se em peripécia de Dedé, no intervalo de uma pelada.

 

Cansado e coberto de suor, urdiu uma última lufada de ar e desembestou em direção ao açude. Mais preciso que a rima, o flecheiro foi certeiro: no meio do lamaçal. Megulhou fundo, sem destino, como nosso atual governo.

 

Porquanto todos saibam o paradeiro de companheira Dilma, sequestrada pela sua infecta e decomposta base aliada, ninguém sabia do destino de Dedé. Afundara, como algumas de nossas tão caras esperanças, no imenso lamaçal do Bodocongó.

 

Onde fora parar Dedé?

 

Os minutos aceleravam pulsações, sussuros e vaticinios trágicos.

 

Mas Dedé emergiu da tragédia. Para alegria de todos, como um escafrandista do lodo ressurgiu como premonitor beemote, um mitico e devastador Golem para finalizar o segundo tempo da pelada. Antes disto, removeu dez quilos de aguapés, um filhote de preá, vinte e cinco caçotes entranhado nos cabelos, cinco trairas grudadas nos dedos do pé e habituais sangue-sugas do serviço público, grudadas no seu couro.

 

Contra todas predições catastrófistas, Dedé se impôs sobre dificil conjuntura. Com performance decisiva, superou a crise da divida, o atoleiro político como notável bailarino. Driblou adversidades e mandou no jogo. Em dois minutos, marcou cinco gols. E no apagar das luzes, quando o goleiro amarelou diante de poderoso chute de Simplício. Pegou um penalti e garantiu a vitória do time.

 

 Mas, a quase tragédia coletiva não terminara aí.  Pendente, havia contaminação política do açude, que em nada se assemelha à salutar crise hidrica de São Paulo. Lá se descortinavam virtualidades do choque de gestão. Aqui, no açude de Bodocongó a costumeira sujeira da desigualdade, do abandono, da falta de saneamento, de politicas publicas, da profusão de endemias, da esquistossomose, da hepatite subita e da cólera morbus. Doenças que não ameaçam afortunados e bem intencionados coxinhas, mas, ainda hoje, matam milhares de nordestinos.

 

Pois bem, a pelada chegara ao fim. A conversa rolava solta e Dedé sobrevivera. Ileso e radiante, do jeito que entrara em campo. Com uma diferença. Estava rajado de suor e lama.

 

Final feliz? Ledo engano.

 

No curso desta pelada, havia a bomba de efeito retardado: chamada dindim,  fabricado não se sabe como, a quantas mãos, com quais tinturas e com que água.

 

Ao chegarmos à Campina, nos advertiram: nunca beba sua água. Quem bebe fica aqui para sempre. Mas não foi este decantado efeito que prevaleceu na malograda pelada. Na crudelíssima, restrita e solitária provação causada pelo maldito dindim. Na tragédia individual, que consumiu penosos quatro ou cinco meses de vida com incontrolável diarréia.

 

* Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG

 

As afirmações e conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta responsabilidade dos seus autores, não expressando necessariamente a opinião da instituição


Data: 12/08/2015