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Artigo - O mote

Benedito Antonio Luciano*

 

No contexto da poesia popular nordestina, a cantoria de viola possui vários estilos e dentro deles os violeiros utilizam diferentes combinações de estrofes e melodias para compor seus versos.

 

Geralmente, eles seguem com extremo rigor essas combinações, obedecendo às regras do estilo que esteja cantando no momento, mantendo os números de sílabas métricas, o número de versos, o esquema de rimas, a acentuação tônica e, em casos específicos, o mote.

 

De forma simplificada, o mote pode ser entendido como uma sugestão para o que cantador desenvolva as estrofes de acordo com um tema proposto. O mote para ser bom já deve vir metrificado, podendo ser de dois, três ou quatro pés, de sete ou dez sílabas. Já o termo glosa é o desenvolvimento da estrofe que finaliza com o mote.

 

Para ilustrar como um mote pode ser desenvolvido, segue um que teria sido proposto para o lendário poeta Zé Limeira. O mote é o seguinte: “Será que ao menos um dia/Tu não te lembras de mim?”. Segue a forma como Zé Limeira teria glosado o mote citado: “Trovoada dos Tafuis/ Espiga de mii zarôi/Nas asas dos urubus/Entrada de ano ruim/Cabra veia não dá cria/ Será que ao menos um dia/Tu não te lembras de mim?”.

 

No livro “De repente cantoria”, de Geraldo Amâncio e Wanderlei Pereira, há um exemplo interessante de como um cantador desenvolveu um mote complicado que recebera de alguém: “Ela não diz, eu não digo/Quem é que pode saber?”. Segue a glosa: “Ela fez, eu também fiz/Eu também fiz, ela fez/Fizemos os dois de uma vez/Eu não digo, ela não diz/Por certo ela não quis/Dar ao mundo conhecer.../Eu também não vou dizer/O que aconteceu comigo:/Ela não diz, eu não digo/Quem é que pode saber?”.

 

Segue outro exemplo de mote complicado, conhecido como trava línguas, colhido do “Dicionário Bio-Bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada”, de autoria de Átila Augusto F. de Almeida e José Alves Sobrinho: “Pinta pia e pinga a pipa/Põe a pata, o peba pega”. Os dois versos propostos foram glosados assim: “Muge a vaca, berra o touro/Canta o galo, chia o rato/Rosna o cão e mia o gato/Zumbe a abelha e o besouro/Grasna o pato, fala o louro/Rincha o cavalo e esquipa/E você vai levar ripa/Enquanto a língua escorrega/Põe a pata, o peba pega/Pinta pia e pinga a pipa.” Observe que o poeta inverteu a ordem dos versos propostos no mote.

 

O exemplo a seguir trata-se de uma décima comum do poeta Agostinho Nunes da Costa, citado por José Alves Sobrinho, em “Glossário da Poesia Popular”, na qual o poeta glosa o mote de quatro pés: “Quem quiser falar de mim/Cante e grite pela rua/Que eu como é na minha casa/Cada qual come na sua”. Eis a última estrofe da glosa: “Que importa Pedro ou Paulo/Seja rico, ou seja, nobre/Que eu vivendo como pobre/Ande a pé ou a cavalo/A mim não me dá abalo/Toda grandeza da Lua/Cante e grite pela rua/Quem em paixão se abrasa/Eu como é na minha casa/Cada qual come na sua”.

 

Em fevereiro de 2000, enviei um mote para o amigo Pablo Javier Alsina. O mote foi o seguinte: “Passa a Lua, passa o Sol, passam os astros,/só não passa a saudade do meu bem”. Eis como o poeta argentino mais nordestino que conheço se saiu em uma das suas estrofes: “Passa a Roda do Tempo sem parar/ Passam anos no giro deste Mundo/ Passam horas, minutos e segundos/Que o relógio não para de contar/Quando o grão de areia vai passar/Na ampulheta, não espera por ninguém/Há milênios, falou Matusalém/E previu em calendários Zoroastro/Passa a Lua, passa o Sol, passam os astros/Só não passa a saudade do meu bem”.  

 

*O autor é professor do Departamento de Engenharia Elétrica da UFCG.

 

As afirmações e conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta responsabilidade dos seus autores, não expressando necessariamente a opinião da instituição


Data: 04/08/2015