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Artigo - Nós, que sempre nos amaremos

Homenagem póstuma a Paulo Décio de Arruda Melo

 

Wagner Braga Batista*

 

Mudanças, mudanças e esquecimentos deixam perdidos no fundo das gavetas registros de nossas vidas. Tantos, tão oscilantes, ora persistem, ora se tornam voláteis na dialética tensa e envergonhada do dia a dia. Das rotinas que nos roubam o futuro, como também fazem desaparecer os resquícios de nosso passado.

 

Nesta incessante batalha da memória contra o esquecimento, muitas lembranças persistem. Não se apagam. Mais leves que as obrigações ordinárias, são sensações agradáveis, que, as vezes, nos causam tristeza, porém nos fazem felizes.

 

Do fundo de uma gaveta surgiram fotogramas guardados há 40 anos. Muito tempo. Mudanças, atropelos, descuidos e esquecimento deixaram-no como um fiel despositário desta memória que mistura júbilo e tristeza.

 

Expressão de momento, registra uma circunstância. A felicidade e a ingenuidade de estudantes concluintes do curso de ciências sociais, formados na metade dos anos 1970. ( Universidade do Estado da Guanabara,- UEG, 1975)

 

Não fala de vissicitudes da vida, do horário noturno, de viagens de ônibus, do cansaço, de conversas amenas, de segredos e aventuras amorosas e de possiveis temores frente ao futuro. Tampouco fala do tempo sombrio, de censura, prisões e atordoamento.

 

Mostra-nos, apenas, uma formatura singela, realizada na data prevista, na hora marcada, numa sala de aula cercada de alguns cuidados. Sem discursos, alusões desconfortáveis e homenagens inoportunas.  Apenas, um ritual de silencio, formal e sem relevância pra ficar na lembrança.

 

Por um acidente de percurso, de ultima houve um discurso. Autorizado por quem? Por quê? Não sabemos.

 

Recordamo-nos, apenas, do mote. Quaficamo-nos como uma turma de Policarpos Quaresmas, que saudava ingenuamente a mão de ferro que se voltava contra si.

 

Naquela redoma, falsamente protetora, fomos mantidos pelo regime de exceção à margem de influências políticas danosas. Nós, alunos, e o curso de ciencias sociais, rebaixado pelo senso comum, reproduzindo aspirações e pulsões, próprias daquela conjuntura, que restringiam nossas virtualidades crítica e nos induziam, apenas, a subir na vida..

 

Nesta turma tínhamos como colega um oficial do serviço de informações do exército e um professor responsável pelas campanhas da Assesoria Especial de Relações Públicas da Presidencia da República- AERP, autor de memoráveis e tenebrosas peças públicitárias laudatárias do regime militar. Os demais professores, premidos pelo temor, evitavam qualquer tipo de comprometimento.

 

Pois bem, apesar de tudo, Policarpos Quaresmas, em nossa indigente ingenuidade, tornamo-nos um agregado complexo, com afinidades diversificadas, porém consistentes. Um coletivo extremamente companheiro e generoso, participe de curso noturno, composto por alunos amadurecidos. Uma turma, como não a conhecem estudantes de cursos fragmentários e dispersivos dos dias de hoje.

 

O diretor da faculdade, também desempenhava sinuoso papel. Fiel ao traçado, quando escapávamos da vigilancia dos orgãos de informação, encarregava-se de cumprir o designado por estes aparelhos repressivos.

 

Tínhamos um colega, que sonhava entrar para o SNI. Declaradamente. Não porque fosse um dedo-duro e cúmplice de arbitrariedades. Pautava-se cega e ingenuamente pelos padrões de vida vigentes.  Como contraponto, havia Leila, filha de um ex-ferroviário, possivelmente comunista, como nós, chamado Lênin.  Esta miscelânea possuia muitos traços comuns. Todos nós trabalhávamos, muitos postergaram a formação por conta de dificeis condições de vida, quase todos exercitavam, tardiamente, a leitura, a reflexão e despertavam para realidades que, até então, não lhes eram acessíveis.

 

Paulo tinha 19 anos quando entrou no curso. Casado, prematuramente, preparava-se para ter seu primeiro filho: Rodrigo.

 

Distoava do conjunto da turma pela sua vasta bagagem cultural, por suas inclinações políticas e por seu refinado humor. Por ser mais velho, sem cautela  aproximou-se de nós. Desde então tornamo-nos irreparáveis e inseparáveis amigos.

 

Companheiros de noitadas, confidências e angústias. Em 1978, vim para Campina Grande. Paulo, pouco depois, foi lecionar em Maceio. No nordeste, estes laços foram se fortalecendo, apesar da distancia.

 

Poucos anos depois, fomos presentados com este primo afastado, meio sobrinho e eterno amor de criança, Tiago, fruto de sua relação com Eliza. E mais tarde, com o carinho e a fraternidade de Silvana, sua companheira neste último lustro, que lhe proporcionou a convivência afável com Pablo, seu enteado.

 

Nas últimas vezes que nos encontramos acalentamos a idéia de localizar e reunir nossa dispersa turma de Ciencias Sociais. 

 

Paulo possuia notável capacidade de memorização. Reconstituia com requintes passagens de nossa vida em comum. Desenhava com ironia os cacoetes autoritários de alguns de nossos mestres. Com argúcia e sutileza brincava, amigavelmente, com nossos vicios e deslizes.

 

Sem dúvida tornara-se imprescindível para o resgate destes colegas. Nestas metáforas contidas em fotografias com pouca resolução e nitidez estão contidas indeléveis lembranças, que precisam ser restauradas.

 

Uma fatalidade impediu a realização deste nosso projeto, porém não impedirá a recomposição desta imagem difusa de carinho, fraternidade e companheirismo, que será sempre presente ante sua lembrança.

 

Há um filme belissimo, de Ettore Scola,  intitulado “ Nós que nos amávamos tanto” (1974). Uma obra datada, trata de desenlances no relacionamento de um grupo de companheiros que participaram ativamente da resistência ao fascismo na Itália. Venceram os rigores deste tempo opressivo, mas não subsistiram às decepções que se seguiram.

 

Nós, os Policarpos Quaresmas de outrora, driblamos tempos sombrios, vencemos canhestramente a ingenuidade e conseguimos nutrir o carinho que Paulo Décio, com seu ar bonachão, sua ironia e seu aguçado senso critico depositou em nosso convívio. Com isto, podemos dizer: imunizou-nos, com seu humor, de grande parte de angústias e decepções próprias de todo relacionamento humano. Preservou-nos de frustrações.

 

Levou sua cordialidade, a seu jeito, da sala para a cozinha, da varanda para o terreiro. Para os bares que frequentava, para as rodas de amigo, para a gente simples com a qual convivia, para vidas em comum e praças, onde sempre estaremos.

 

* Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG

 

As afirmações e conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta responsabilidade dos seus autores, não expressando necessariamente a opinião da instituição.


Data: 10/06/2015