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Artigo - O capitão Fracassa e o Congresso Nacional

Wagner Braga Batista*

 

Mais de vinte anos depois, voltamos a assistir uma obra cinematográfica magistral.

 

Conjuga o talento de dois mestres, da literatura, Theophille Guatier, e do cinema, o memorável Ettore Scola. Incorpora também beleza e talento. A beleza feminina de duas jovens atrizes, Emanuelle Beart e Ornella Mutti, e requintadas interpretações . Neste mister, causam-nos profunda saudade quando confrontadas ass caras e bocas da Globo, interpretando a si mesmas.

 

Pois, bem “A viagem do Capitão Tornado”( Il viaggio di Capitan Fracassa- 1990), assim como “Casanova e a Revolução”  ( La Nuit de Varennes-  1982  ), do mesmo diretor, falam de interações entre a ficção e a História. De  relaçôes melifluas por meio daS quaIS fatos sociais e suas versões se misturam, sensibilizam-nos e nos confundem.

 

O filme, enquadrado como peça teatral, remete-nos à viagem e às desventuras de um grupo de saltimbancos. Inicia-se numa noite de tempestade, quando a trupe é instada a conduzir um barão decadente, sem trajes apropriados, com piolhos e cabeça raspada, a uma possivel entrevista com o Rei da França.

 

Daí em diante, sem conseguir separar sua realidade da fantasia, a trupe, prossegue.

 

Aos poucos, transforma a possibilidade de ser recebida pelo Rei como única alternativa de vida. A ilusão transforma-se numa estratégia salvacionista. O barão fracassado, converte-se num trampolim de acesso à corte em Paris, onde, imaginam, metamorfosear-se ão. Com trajes, modos e linguagens adequadas, celebrarão suas apresentações para a aristocracia

 

O filme fala-nos de expectativas, temores e privações, passadas e futuras. De desesperadas estratégias de vida. Dos  necessitados, sem alternativas hábeis para escapar de um destino, que não lhes pertence. Da vida inglória, pautada pelo frio, fome e humilhações. Coloca-nos, graças a seus móveis e narrativa, em sintonia com o que acontece em outro cenário: o Congresso Nacional. Onde o destino se torna um ato de pertencimento privado e a glória, de meia dúzia,  evocação e mérito sem ressonância.

 

Neste cenário, o filme poderia iniciar com uma panorâmica de desequibrios e de carências, que introduzem grande parte da população brasileira como uma trupe de saltimbancos. Com seus talentos e desventuras, esta massa humana dribla infortúnios. Enseja  ver  favores, promessas e circunstanciais ajudas como sinais de esperança. Esta mesma esperança, decantada por toda sorte de charlatães, principalmente pelos que transformaram a política em sua seara privada e seu espaço de atuação preferencial.

 

Pois bem, na vida real, a História e a ficção se misturam.

 

Ato segundo. Súbito, conquistas sociais e vislumbres democráticos se misturaram em eleições contaminadas pelo poder financeiro e por jatinhos privados. Num simples processo de disputa da Mesa da Câmara, levaram Eduardo Cunha a 21 unidades da Federação. Diga-se. Não é pouco, no intervalo de um mês.

 

Os narradores da peça divergem. Especula, Será que nossas conquistas logradas no processo de democratização do país foram transformadas e degradadas por este jogo de poder ? Será que  vence aquele que dispõe de melhor logística e melhores recursos financeiros e publicitários.

 

Convencidos, sugerem que estes recursos, exercicios de mágia, da noite para o dia, permitem que a ficção transgrida a História. Transformem charlatães em messiais e play boys em salvadores da pátria.  Suas biografias, que emolduram propagandas eleitorais, nada têm com sua trajetória de vida. Permitem apenas que entrem em cena. Cumpram seu papel. Usem todos artifícios ignóbeis para fazer valer e assegurar interesses de poucos. Porém, esta narrativa, não aparece nos jornais de época.

 

Ato três. Novo ator entra em cena. A desfaçatez se destaca.

 

A intersecção entre a peça teatral e a prática política vigente não é uma concessão da tragédia, das farsas ou dos dramas cotidianos, que se agravam com a supressão de direitos sociais dos que perambulam por estes cenários, sem protagonismo.

 

A interação entre a arte a apolítica se torna mais pertinente, se considerarmos árida posição de Theopille Gauthier ao afirmar a supremacia das artes sobre a vida, seu desdém pela moral e sua postura de indiferença pela ética no teatro e na literatura.

 

Conclusão. Todos nós estamos dentro e fora do palco e percebemos nosso distanciamento do protagonismo que esta farsa nos reserva. Damo-nos conta da similaridade entre “ A viagem do capitâo Fracassa” e as atuais agendas do Congresso. Depois das terceirizações, do financiamento de empresas privadas de campanhas eleitorais, esta semana teremos a redução da inimputabilidade penal.

 

Pontuando o desfecho.

 

Numa passagem do filme, uma personagem fala da infelicidade amorosa e de suas frustrações.

 

Perempetória, sugere  que o mimetismo do teatro permite aos atores tornar todo mundo feliz, menos a si próprios. Os interpretes, acrescenta, infelizmente, não conseguem escapar dos dramas seus diários.

 

No Congresso, e em governos, é diferente. Com despudor e cinismo, os protagonistas de nossas frustrações conseguem ludibriar a vida real e se tornar sua própria ficção. Escapam ilesos das farsas  que interpretam e dos dramas diários que nos fazem vivenciar.

 

Diversamente do teatro, desvencilham-se de todas suas interpretações, falas e roupagens.  Conseguem, em meio ao júbilo e às vantagens de poucos, deles e dos que os financiam, desgraçar a vida de todos nós.

 

Enfim, isto é apenas uma peça de teatro.

 

* Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG

 

As afirmações e conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta responsabilidade dos seus autores, não expressando necessariamente a opinião da instituição.


Data: 02/06/2015