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Artigo - Esqueçam-se do que escrevi

Wagner Braga Batista*

 

Durante a década de 1990, a perplexidade frente à avassaladora restauração liberal e ao retrocesso, que subtraiu inúmeros direitos sociais, contribuiu para disseminar a indiferença e o cinismo no meio acadêmico. Desencadeou a voracidade e a competição na disputa dos parcos recursos que foram destinados às instituições públicas de ensino superior. As conquistas democráticas e a consciência coletiva deram lugar ao individualismo com sérias implicações. A nosso ver, a mais deletéria tornou a sistemática renúncia  principios éticos e políticos exigida pela lei de Gerson, por meio da qual a obtenção de vantagens e a ascensão social converteram em horizonte comum. Nestes tempos sombrios, expedientes vários facilitaram a sobrevivência abjeta associada à  adesão a novos paradigmas. A canalhice tornou um mérito e o desprezo pelos direitos coletivos demonstração de eficácia. Neste cenário, destoando da atrofia da educação e de instituições públicas surgiam ilhas de excelência.

 

Na academia esta escalada não ocorreu de forma aletória e involuntária. Foi estratégica.

 

Requereu também mecanismos de convalidação perpetrados por dirigentes e professores que se despojaram de escrúpulos e pruridos críticos para ser bafejados pelos novos editais que elimavam gradativamente a autonomia da universidade, a isonomia no trabalho e a aparidade democrática nas decisões. Novos prêmios foram destinados aos que corroriam a coluna vertebral da carreira docente, bolsas empresariais, albuns de figurinha para colar pesquisas,  carnês de produtividade com validade para shoppings, perfumarias e supermercados, bônus falta às aulas para contar pontos na ascensão funcional, certificados de moradias em países distantes para fazer jus à proficiência em outros idiomas, além de títulos e comendas de notabilidade para fazer cena em circulos de interesses comuns.

 

Estes circulos de notáveis despertaram inveja em curias. Cristalizaram-se como donos do saber e poder sobre heresias e profanações do sagrado conhecimento cientifico.

 

Dá para ter credibilidade? Ou seja, conselhos técnico-consultivos responsáveis pelo main stream à luz de preceitos e diretrizes liberais. Deste modo, estabeleceu-se a fina consonância de novas diretrizes para a pesquisa e o ensino superior com políticas de governo. A bem da verdade, desde então, este estratagema não se modificou comprometendo a autonomia da universidade pública e o direcionamento de orgãos de fomento à pesquisa.

Neste contexto inóspito, muitos marxistas, como nós, declinaram de suas convicções para se manter fiéis a estas estratégias de sobrevivência atipicas. Em troca, foram contemplados com bençãos e premiações de notáveis acima do bem e do mal. Desta nova aristocracia togada que ao sabor dos ventos se mantém enquistada em conselhos que apelavam à meritocracia para dourar a pilula da exclusão política e social. Esta prática não mudou, mas alguns destes conselhos atualmente são qualificados como populares. Pior, causaram inesperado temor quando se cogitou de homologa-los por meio do decreto  4548.

 

Pois bem, nestes tempos sombrios, de canibalismo de instituições públicas e do magistério, a credibilidade academica desceu pelo ralo. Da noite para o dia, muita gente boa, para legitimar seus deslizes, tornou-se pós-moderna, iconoclasta de vitrine, catastrofista, proxeneta de monitores, motorista de projetos para agências de financiamento, narcodependente de cargos comissionados, de funções gratificadas, de coordenações de coisa alguma, de chefias de departamentos e de gabinetes. Surfando na maré montante do liberalismo, subia e descia ao sabor das conveniências, mantendo-se sempre fiel e assídua leitora assídua da revista Caras.

 

Estes evangelizadores na fé em se dar bem, tudo fizeram para não deixar rastros e vínculos com o passado de engajamento em alguma causa pública que provocasse suspeita entre os detentores do domus liberal. Nada que cheirasse ou deixasse vestigios de qualquer questionamento aos novos donos da quitanda a serviço do poder liberal. Diga-se, ao primado da razão gerencial nas instituições de ensino consoante com o consenso global de John Williamson.

 

Aos olhos de hoje, qual a credibilidade que você devotaria aos missionários da submissão estratégica, política,  econômica e ideológica ao consenso de Wahington? Aos apologetas das privatizações, do desmonte da universidade pública, dos balcões de negócios, que degradaram a função do ensino, da pesquisa e da extensão? Aos promotores deste empreendedorismo sem riscos, realizado às expensas do patrimônio públicos, que transformou docentes em comerciantes ? A esta gente que plantava tendas de publicidade nas portas da UFCG, box de ofertas de serviços no campus universitário,  cartazes, assinados por professores RETIDE em corredores e salas de aula, vendendo bares, software e cursos pagos ? Qual a credibilidade dos detentores de sesmarias intrasponíveis espalhadas em universidades e fundações no país?

 

A universidade tornou-se um ambiente feérico que oferece espações privilegiados para tudo e para todos que ofereçam serviços rentáveis, porquanto a educação pública, gratuita e de qualidade foi deixada no brejo. Ainda hoje, em instituições públicas de ensino superior, proliferam cursos de especialização pagos, coordenados e realizados por professores que declinam de atividades letivas na graduação para as quais foram contratados.

 

As chamadas ilhas de excelência emergiram no espaço público tendo como contraponto a depreciação de atividades de ensino essenciais e a crescente exclusão social. A hecatombe da função social da universidade pública foi desencadeada em nome da rentabilidade de serviços prestados à meia duzia de empresas beneficiárias desta instituição pública. As fontes de financiamento público secavam para que patrocinadores privados pudessem disseminar e tornar prevaleces seus interesses no meio acadêmico

Este processo artificioso, patrocinado por políticas ultraliberais de governo, impeliam ao naufrágio, ao mesmo tempo, objetivos inalienáveis do ensino/ aprendizado, pedagogias emancipatórias e professores comprometidos com a educação propedêutica, pública e gratuita.

 

O escopo era um só. Abrir campo e alavancar a expansão do ensino superior privado com padrões de qualidade bastante duvidosos, que se seguiu.

 

Pois bem, somente aqueles que converteram a História em exercicio de diletantismo, sentem-se honrados em celebrar curriculos forjados a custa da degradação e destruição do patrimônio público. Por isto, buscam angariar credibilidade desvencilhando-se da memória deste período.,  Por ironia do destino, na Folha de São Paulo surge um texto que confronta credibilidade e popularidade ( 18 de maio de 2015) .

Contudo, o autor do artigo, em tela, é saudoso de métodos que não transparecem credibilidade. Sugerem, isto sim, privilégios, logrados graças a concessões, favores e  malversação de recursos públicos, utilizados para patrocinar interesses privados sem questionamento algum. Há poucos meses, interpelado por suas atitudes, esqueceu-se da credibilidade na gaveta de cabeceira e sacou habitual desfaçatez tirada do bolso do colete.  Alegou ignorância para justificar ações premeditadas, quais sejam, a construção para uso próprio de aeroportos com recursos do governo de Minas Gerais na proximidade de fazendas de seus familiares.

 

Pois bem, o autor do artigo apela à credibilidade. Estabelece sintonia  de propósitos e de ações com um de seus predecessores. Reporta-se a uma de suas conferências realizada na Câmara de Comércio Brasil-EUA, em companhia do ilustre Bill Clinton, para afirmar a supremacia da credibilidade frente à popularidade política. Ora vejam...

 

Há dois fatos singulares e bastante sugestivos. Permitem-nos especular sobre a presumida credibilidade daquele que invocou seus confrades academicos pedindo-lhes que esquecessem do que disse e escreveu.

 

Um deles o memorável Otávio Ianni, co-autor de livro com FHC (Homem e Sociedade, Editora Companhia Nacional, SP, 1961). Para não  confundir trajetórias intelectuais e políticas distintas, Ianni preferiu não esquecer. Ao invés disto, renunciou às implicações  desta parceria. Sem hesitar, distanciou-se de qualquer feito ou fato que estabelecesse proximidade ou o associasse ao colega de outrora.

 

À época, nosso herói da credibilidade apontava uma zona de sombra na intersecção da  política e da ética. Induzia à crença de que a atividade política implicaria em trilhar caminhos obscuros, que não poderiam ser aferidos por parâmetros éticos. Pois bem, neste mesmo período foi brindado com artigo de Carlos Heitor Cony, sobre o qual falaremos depois.

 

Hoje, como uma vestal da ética, FHC vem a público para afirmar que a corrupção, precisamente na Petrobras, não começou no governo Dilma. Pontua: começou no governo Lula. Esquece-se da zona de sombra na qual transitaram alguns de seus pares e um dos delatores na Operação Lava Jato, Pedro Barusco. Em depoimento afirma que desde 1997, faturava  ilicitamente na  Petrobras. Aliás, a maior parte do montante 90 milhões de reais que pilhou da estatal foi obtida durante o periodo de 1997 a 2002. Ou seja, no governo de FHC.

 

Mentor e promotor de políticas educacionais, que aprofundaram a privatização do espaço público e corromperam universidades públicas, FHC não tem autoridade política e moral para se apresentar como guardião da probidade. Tampouco da credibilidade reclamada por seu epígono. Os dois se igualam.

Para concluir, é bom rememorar o artigo de Carlos Heitor Cony. Advirta-se, desapareceu dos arquivos da Folha de São Paulo. Intitulado “O Fausto estelionatário” reporta-se ao personagem de Goethe que vendeu a alma ao diabo. Refererindo-se a Fernando Henrique Cardoso, ressalta sua proeza. Como astuto estelionatário conseguiu vendê-la duas vezes.

 

Certamente, predecessor e seu epígono, não são depositários da credibilidade que reclamam para si próprios.

 

* Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG

**As afirmações e conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta responsabilidade dos seus autores, não expressando necessariamente a opinião da instituição.

 


Data: 19/05/2015