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Artigo - Notas sobre o mundo do trabalho e dos trabalhadores a propósito do sesquicentenário de Campina Grande

Luciano Mendonça de Lima

 

Tão logo seja apresentado esse processo ativo de vida, a história deixa de ser uma coleção de fatos mortos, como para os empiristas ainda abstratos, ou uma ação imaginária de sujeitos imaginários, como para os idealistas.

(K. Marx e F. Engels. A ideologia alemã. 1845-1846)

 

Toda cidade que se “preze” constrói para si uma espécie de identidade que a faz ser reconhecível pelos seus habitantes e, ao mesmo tempo, a distingue das demais urbes no tempo e no espaço. Assim, no plano internacional temos o exemplo de Paris, a capital burguesa por excelência do século XIX, como a cidade “luz”. Em termos nacional o caso mais emblemático é o Rio de Janeiro, que durante muito tempo foi a capital política e cultural do Brasil e talvez por isso mesmo tenha adquirido a fama de cidade “maravilhosa”.

 

Contudo, ao contrário do que se possa pensar, essas imagens não surgiram do nada, como que por geração espontânea ou então por obra e graça do “Divino Espirito Santo”. Na verdade, elas foram gestadas em determinados contextos históricos em que essas mesmas cidades estiveram inseridas no tempo. E mais: por trás de sua aparente neutralidade ou inocência se escondem projetos de determinados grupos sociais que tentam nesse embate transformar os seus interesses particulares como se fossem do conjunto da sociedade em questão no plano da memória histórica, um típico exemplo de operação ideológica em que a parte é tomada pelo todo.

 

Não é nosso intento mostrar o quanto há de falacioso em torno das ideias de “cidade luz” e “cidade maravilhosa”, até porque esse inventário crítico já foi feito por outros pesquisadores muito melhor do que poderíamos fazer. Nosso objetivo aqui é tratar de um exemplo bem mais próximo de nós, ou seja, o de Campina Grande. Afinal de contas, não é preciso ser especialista na história desta cidade situada no agreste paraibano para saber que a seu nome foi associado diferentes epítetos grandiloquentes, tais como “cidade do progresso”, “terra das oportunidades”, “Canaã de leais forasteiros” etc.

 

Entretanto, de todas as imagens associadas à história de Campina Grande aquela que melhor se fixou na imaginação coletiva foi a de “capital do trabalho”. Surgida no contexto de profundas transformações que a própria cidade vivia nas primeiras décadas do século XX, momento esse que coincide com o auge da economia algodoeira, tal denominação foi forjada por suas classes dominantes locais para criar uma imagem idealizada da cidade e assim encobrir o caráter espoliador de que se revestiu esse dramático e violento processo para a grande maioria da população, em especial os trabalhadores. Nesse contexto, as elites letradas da cidade (aí inclusos os seus historiadores clássicos) passaram a difundir em verso e prosa esse ideário, uma espécie de “senso comum” da história local que, desde então, se transformou em uma chave explicava do que veio antes e depois, no que diz respeito à lógica que informou o processo histórico do município.

 

Desse modo, escrever uma verdadeira história do trabalho em Campina Grande passa, necessariamente, por um acerto de contas ao mesmo tempo teórico e político com essa mistificação ideológica que, por exemplo, tenta suprimir da memória coletiva da cidade a experiência histórica de seus trabalhadores de ontem e de hoje. Nesse sentido, a melhor maneira de descontruir essas e outras falácias historiográficas é reconhecer que a história do trabalho por estas plagas começa com as populações nativas que aqui existiam muito antes da chegada do colonizados português nos sertões da América portuguesa (território que serviu de palco para o posterior desenvolvimento histórico de Campina Grande e outras cidades do interior da Paraíba) no século XVII e os africanos e seus descendentes. Foram esses trabalhadores os responsáveis pela produção da maior parte da riqueza material e imaterial da história colonial e imperial do município, a partir de um violento processo de expropriação comandado por aqueles que formariam o esboço da classe dominante local, ou seja, as primeiras famílias dos sertanistas e seus descendentes proprietários de terra e de gente. Em outras palavras, podemos afirmar que o primeiro ciclo de desenvolvimento da história de Campina Grande desenrolado entre os séculos XVII e XIX se deu, literalmente, em “costas negras”, a partir de um intenso processo de exploração e opressão de homens e mulheres escravizados.

 

Com o fim da escravidão foi se constituindo em Campina Grande uma nova classe de trabalhadores, formada por ex-escravos, pelos pobres livres disponíveis anteriormente e por levas e mais levas de migrantes provenientes de diversas localidades da região e seus arredores, especialmente nos momentos críticos de estiagem. Mais uma vez, foi essa gente, com seu sangue, suor e lágrimas, a responsável pelo novo ciclo de desenvolvimento e modernização que o município viveu na primeira metade do século XX, graças especialmente ao boom algodoeiro. Este, se por um lado fez a “festa” das elites proprietárias ao acelerar o processo de acumulação privada de capital em poucas mãos, por outro lado trouxe consigo um rastro de miséria, dor e sofrimento para a grande massa laboral local.

 

Que o diga, por exemplo, João Galdino de Albuquerque, 28 anos de idade, operário da Companhia Paraibana de Beneficiamento de Prensagem de Algodão, que por não conseguir acompanhar o ritmo voraz do maquinário responsável pelo beneficiamento do “ouro branco” teve sua mão esquerda totalmente esmagada no dia 26 de março de 1928. Essa história traduz em toda sua crueza o outro lado do “progresso”, pois se a riqueza do município naquele momento era medida cada vez mais pelos milhares de fardos de algodão que haveriam de tornar Campina Grande conhecida como a “Liverpol brasileira”, ela também cobrava o seu preço social e humano, ou seja, outro tipo de “fardo” a ser pago por gente como João Galdino de Albuquerque e tantos outros protagonistas anônimos da história da “Rainha da Borborema”, imagem essa de “nobreza” que, não por acaso, está sendo forjada para jogar na lata do lixo da história local eventos trágicos e incômodos como estes e tantos outros que ficaram registrados nas páginas da documentação de época que escapou à ação destruidora do tempo e à incúria dos homens e que jaz nos caóticos arquivos do município.

 

Outro que também sentiu na pele todo o peso do “fardo do progresso” em Campina Grande foi Manoel Pereira da Silva, residente no então periférico bairro do Alto Branco e que em 1937 contava com 42 anos de idade. Naqueles dias estava em pleno curso o processo de reordenamento espacial do centro urbano da cidade, comandado a ferro e a fogo pelo então prefeito Vergniaud Wanderley. Contudo, essa transformação só foi possível em função do investimento de parte da riqueza proveniente da produção algodoeira, com o objetivo de torná-la uma cidade a imagem e semelhança de suas classes dominantes, o que implicava, dentre outras intervenções, na demolição/erguimento do seu casario, delimitação de áreas exclusivas de moradia, comércio e administrativa, abertura de avenidas e ruas largas para melhor fluxo das forças do capital, serviço de higienização e saneamento de determinadas áreas centrais etc. Era nesse último setor que trabalhava Manoel Pereira, contratado que foi como operário pela “Repartição de Saneamento de Campina Grande” para cumprir uma exaustiva e perigosa jornada de 10 horas de trabalho em troca de uma mísera diária de 3$500. Como sempre fazia rotineiramente, naquele dia 29 de novembro de 1937 saiu para trabalhar na pedreira Oití, porém desta vez foi tragado por uma barreira que caiu com toda violência sobre o seu frágil corpo. Apesar de ter escapado do grave acidente de trabalho sofrido naquela ocasião, Manoel acabou falecendo algum tempo depois, em 02 de agosto de 1939, abandonado à própria sorte pelos seus patrões, deixando viúva Olímpia Maria da Conceição com oito filhos órfãos.

 

Passado o falso fausto do boom algodoeiro, na segunda metade do século XX as elites locais buscaram novas fórmulas de superar a crise que se acentuava a cada momento, com claros reflexos no mundo do trabalho. Foi neste contexto que o golpe de 1964 e a posterior instalação do regime militar (diga-se, de passagem, apoiados em bloco pela elite local em todas as suas matizes) trouxeram um novo alento para a classe dominante local com a industrialização, via incentivos fiscais para empresas nacionais e multinacionais que aqui se instalarem. Em que pese o relativo fracasso desse projeto, pois os militares estimularam a criação de centros regionais de desenvolvimento capitalista preferencialmente em torno das capitais, nas últimas décadas neoliberais ele ressurge com roupagem aparentemente nova, precarizando cada vez mais as condições de vida e trabalho da classe trabalhadora local. O exemplo mais visível, porém não único, dessa persistente realidade talvez seja a situação do setor de Call Center e Telemarketing. Como se não bastasse as benesses (expressas, por exemplo, em isenção de impostos, cessão de infraestrutura a custa do erário público, disponibilização de mercado consumidor potencial) que, irresponsavelmente, vem recebendo das últimas administrações municipais, essas empresas impõem a seus trabalhadores e trabalhadoras condições as mais deletérias possíveis, materializadas em grande rotatividade de mão de obra, assédio moral, salários irrisórios, exaustivas jornadas de trabalho etc.

 

Convém lembrar, que os trabalhadores de Campina Grande não se conformaram com a sina a que as classes dominantes locais tentaram impor-lhes ao longo do tempo, em termos de exploração e opressão. Afinal de contas, o postulado segundo o qual a cada forma de dominação social correspondem estratégias de sobrevivência, de luta e de resistência dos de “baixo” também se aplica a nossa história, claro que respeitadas as nossas particularidades, desafio esse a que até aqui a maioria dos historiadores locais (seja os da velha, nova ou novíssima “guarda”) não esteve à altura.

 

O momento em que este artigo vem a público coincide com o ano em que Campina Grande comemora seu sesquicentenário de emancipação política. Como era mais ou menos previsível, o cortejo da história oficial tem desfilado triunfalmente nas ruas, escolas, meios de comunicação e outros ambientes públicos e privados. Nos dias que correm esse esforço intelectual e político consiste em dar visibilidade aos mais caros clichês em torno do suposto destino manifesto de grandeza a que Campina Grande estaria vocacionada desde sempre, aí incluso o nosso velho e conhecido mito da “capital do trabalho”. Contudo, também nesse campo tivemos “inovação” neste ano de 2014. A palavra de ordem da vez tem consistido em afirmar que Campina é uma cidade à frente de seu tempo, em pelo menos 150 anos. Divulgada à exaustão pela atual gestão da prefeitura municipal de Campina Grande o aparentemente ingênuo bordão é na verdade uma atualização feita pela classe dirigente, herdeira na linha direta do tempo dos vencedores do passado, de um projeto elitista e excludente de cidade. Nesse sentido, mais do que nunca é preciso fazer uma história a contrapelo, no sentido de romper com este estado de coisas. O que, no nosso entender, passa, necessariamente, pela recuperação do protagonismo histórico dos seus trabalhadores de ontem e de hoje, tanto no plano da memória coletiva, como da práxis política.

 

Luciano Mendonça de Lima é professor da UFCG


Data: 13/10/2014