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Biopiratas, criminosos ambientais e pesquisadores: "farinha do mesmo saco"? - artigo

É preciso disseminar para um público o mais amplo possível informações básicas como o que é e para o que serve a coleta cientifica de material biológico

Alexandre Aleixo - Coordenador de Zoologia do Museu Paraense Emílio Goeldi.

 

Nas últimas semanas, um conflito já antigo, voltou a merecer uma ampla cobertura da grande imprensa no Brasil: aquele entre membros da comunidade científica e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

No início de abril, foram apreendidos em Belém pouco mais de 100 exemplares de mamíferos taxidermizados, coletados no estado do Amazonas e transportados para a coleção Mastozoológica do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), um centenário instituto de pesquisa do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), situado em Belém.

O responsável pela coleta e transporte do material, um pesquisador colaborador do museu, foi autuado por crime ambiental e condenado a pagar uma multa no valor de R$ 51.500,00. Pouco tempo depois, um pesquisador ligado ao igualmente conceituado Instituto Butantã de São Paulo, foi autuado por crime ambiental sob a acusação de biopirataria e condenado a pagar multas no montante de R$16.500,00.

Diante destes dois recentes episódios, a sociedade e a comunidade científica em particular perguntam-se perplexas: existem criminosos travestidos de pesquisadores trabalhando em renomados institutos de pesquisa Brasileiros?

Ainda que as circunstâncias destes dois lamentáveis episódios sejam distintas, eles só evidenciam que tanto a comunidade científica quanto o Ibama devem se mobilizar para evitar que novos casos venham a acontecer no futuro.

É preciso que tanto fiscais da área de meio-ambiente (Ibama, polícias florestais estaduais, etc.), quanto aqueles responsáveis pela fiscalização de portos, aeroportos e fronteiras internacionais (Polícia Federal, vigilância sanitária, etc.), tenham um grau de familiaridade mínimo com as particularidades e a legislação relacionados à coleta e ao transporte de material científico destinado a coleções biológicas.

Não menos importante, é imprescindível que membros da comunidade científica que trabalhem com pesquisa envolvendo material de coleções biológicas tenham pleno conhecimento e cumpram a legislação vigente no país sobre o tema.

Tipicamente, a coleta de material biológico para incorporação em coleções científicas envolve o sacrifício dos indivíduos coletados (particularmente no caso de animais), que depois de sua eutanásia no campo são imediatamente preparados como material científico (taxidermizados, fixados em formol, etc.) e posteriormente transportados por via aérea, terrestre ou marítima até as coleções científicas de destino, normalmente localizadas em grandes centros urbanos.

O material coletado serve de base para importantes estudos nas áreas de anatomia, biogeografia, biologia da conservação, comportamento, epidemiologia, ecologia, evolução, genética, microbiologia, taxonomia e virtualmente todos os aspectos relacionados aos hábitos e ciclo de vida de espécies de bactérias, vírus, protozoários, algas, plantas, fungos e animais.

Geralmente iniciadas por coletores / exploradores durante os séculos XVIII, XIX e XX, as coleções biológicas assumem, no inicio do século XXI, um papel estratégico na sistematização do conhecimento sobre a biodiversidade de um país, o que é especialmente relevante no caso do Brasil, definido unanimemente como um país "mega-diverso".

Pesquisadores que participam da coleta e do transporte de material científico destinado a coleções biológicas trabalham amparados por uma licença de captura e/ou coleta e transporte de material biológico emitida pelo Ibama, órgão do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Uma licença de coleta de material biológico segue um formato padronizado, onde são discriminadas clara e detalhadamente as seguintes informações pertinentes:

(1) período de validade da autorização;

(2) pesquisador ou pesquisadores autorizados a participar da coleta;

(3) instituição de ensino ou pesquisa de destino do material coletado;

(4) grupos taxonômicos e/ou espécies cuja coleta e autorizada;

(5) número máximo de indivíduos por grupo taxonômico e/ou espécie cuja coleta e permitida;

(6) região e localidades do território nacional onde a coleta é permitida e

(7) eventuais restrições, como por exemplo, a proibição da coleta de espécies consideradas oficialmente ameaçadas de extinção em âmbito nacional.

Geralmente, solicitações de licenças para a coleta de material biológico são analisadas dentro de um prazo de ate 90 dias e, se concedidas, vigoram por um prazo determinado. Essas solicitações devem ser acompanhadas de três documentos principais:

(1) detalhado projeto científico contendo uma justificativa para a necessidade da coleta;

(2) currículo do pesquisador ou pesquisadores solicitantes e

(3) declaração de anuência do curador de uma determinada coleção biológica se responsabilizando em receber e cuidar adequadamente do material coletado.

Findo o período de vigência da licença, o pesquisador responsável deve apresentar um relatório de atividades onde constem o tipo, quantidade e a procedência de todo o material coletado.

Nenhuma licença de coleta de material biológico pode ser renovada sem a apresentação deste relatório de atividades; tampouco, pesquisadores em debito com um relatório de atividades podem ter uma licença diferente concedida.

Portanto, fica fácil entender que, justificadamente, a obtenção de uma licença de coleta de material biológico para fins científicos no Brasil não é um processo trivial, pois envolve a comprovação, em todos os seus estágios, da competência técnica, justificativa e legitimidade do pesquisador e do seu respectivo projeto de coleta científica.

As equipes do Ibama que avaliam os pedidos de licença para a coleta de material biológico são, em geral, extremamente criteriosas e competentes e, por normalmente também possuírem avançado grau de instrução acadêmica, na maior parte das vezes trabalham em grande sintonia com as necessidades da comunidade científica.

No entanto, os problemas tipicamente acontecem quando os pesquisadores são abordados por fiscais no campo, portos, aeroportos e fronteiras, durante a coleta ou, mais frequentemente, transporte do material coletado.

A reação mais freqüente destes fiscais, sejam eles do Ibama, Policia Federal, ou outros órgãos oficiais, diante de uma coleção de material biológico recém reunida (que pode incluir animais "carismáticos" com aves e macacos), é um misto de indignação e suspeita.

A tão preciosa licença de coleta de material biológico, obtida depois de 90 dias de espera e de um árduo trabalho de preparação e justificativa do pedido por parte do pesquisador, é quase sempre recebida com espanto e, novamente, redobrada suspeita.

Começam os questionamentos: Você tem uma copia autenticada da licença? Quem é essa pessoa que assina a licença? Você tem uma relação do material coletado? Desde quando um "vice" pode assinar um documento destes? Você é cidadão Brasileiro? Como pode Goiânia e não Brasília assinar uma licença de coleta nacional?

Depois de oito anos perambulando por aeroportos de todo o Brasil com material biológico, essas são apenas algumas das perguntas a que fui submetido.

Infelizmente, posso contar nos dedos de uma única mão, as vezes onde a minha licença de coleta de material biológico foi prontamente interpretada por um oficial publico exatamente pelo que ela representa: um documento legítimo que atesta minha idoneidade, capacidade e legitimidade para ter concedido em meu nome o privilégio de coletar material biológico com finalidade cientifica e transportá-lo para minha instituição de trabalho.

A suspeita por parte dos fiscais em relação ao pesquisador e o material por ele coletado frequentemente são tão grandes que, o que se sucede ao questionamento, é sempre uma incógnita: pode ser um telefonema para Brasília para confirmar a autenticidade da licença (o que pode demorar várias horas e fazer com que o pesquisador perca um vôo de conexão); pode ser um simples pedido por uma fotocópia da licença; pode ser uma repreenda ao pesquisador por ele não ter a mão uma relação pronta do material que acabou de ser coletado e está sendo transportado; pode ser ainda uma outra repreenda pelo fato de apenas o Ibama do estado vizinho (onde o material foi coletado) ter sido notificado e ter inspecionado o material, entre outras possibilidades de desdobramentos bem mais graves, como por exemplo, a apreensão do material legalmente coletado e o seu acondicionamento em condições precárias até que o "caso seja devidamente esclarecido".

De um modo geral, pesquisadores transportando material biológico são, em grande parte das vezes, abordados por oficiais sob a ótica do "culpado até que se prove o contrário".

O fato mais grave é que a licença de coleta, mesmo se válida e apropriadamente utilizada pelo pesquisador, só serve mesmo como uma fraca evidência da sua honestidade, que deve ser comprovada exaustivamente através de outros meios.

Em outras palavras, a evidencia de legalidade provida pela licença apenas impede a condenação sumária e in loco do pesquisador por parte dos agentes fiscalizadores, numa inversão completa de valores.

Pesquisadores responsáveis trabalhando com coleta cientifica de material biológico não se importam em transportar o material coletado com várias copias autenticadas de suas licenças para a distribuição a autoridades competentes (procedimento que eu e meus alunos já adotamos por conta própria ha muito tempo); ou ainda, de fazer o transporte acompanhado de uma lista preliminar do material coletado (embora isso já seja cumprido de uma maneira bem mais satisfatória no relatório final de atividades da licença, onde uma relação completa e detalhada de todo o material coletado deve ser discriminada); ou, finalmente, de colaborar com os agentes fiscalizadores onde quer que seja.

A única coisa com que pesquisadores sérios que trabalham com coleta cientifica no Brasil se importam, é que agentes do Ibama, Policia Federal e outros órgãos oficiais de fiscalização lhes dispensem o mesmo tratamento padronizado, objetivo e justo que funcionários do próprio Ibama já o fazem, quando analisam suas solicitações de coleta de material biológico.

Será que isso é pedir muito? Será que o inquestionável gigantismo territorial do nosso país e de seus vários órgãos, como o Ibama e a Policia Federal, justificam a cômoda aceitação de que uma disparidade de abordagens e tratamentos dentro de uma mesma autarquia sejam fatos naturais e até esperados? Penso justamente o contrário.

O Ibama e a comunidade cientifica já possuem uma relação de estreita cooperação mútua e parceria, exemplificada da melhor maneira possível pelo embasamento cientifico de várias políticas publicas de Meio Ambiente praticadas no Brasil hoje.

Coincidentemente, a legislação que regula a coleta de material biológico em território nacional está sendo alterada pelo MMA da forma mais transparente e participativa possível, com ampla contribuição por parte da comunidade cientifica interessada. É inaceitável, portanto, que essa relação tão saudável no âmbito da tomada de decisões e formulação de políticas públicas, seja maculada na esfera da fiscalização.

Se o problema é uma falta de familiaridade dos agentes fiscalizadores em relação ao que a coleta cientifica de material biológico representa, como ela é feita e regulada, então tanto o Ibama quanto a comunidade cientifica devem ser co-responsáveis por um programa de reciclagem e capacitação destes profissionais.

Por outro lado, a comunidade cientifica interessada tem a obrigação de ser versada nos aspectos legais envolvendo a coleta e transporte de material biológico no Brasil.

Conselhos institucionais de curadoria têm a responsabilidade de orientar seus membros sobre a legislação vigente e pesquisadores devem assinar termos institucionais de responsabilidade declarando estar cientes dos aspectos legais relacionados a coleta e transporte de material biológico.

A legislação sobre o transporte e a remessa temporária ou permanente de material biológico (inclusive genético) para o exterior com finalidade cientifica, foi consolidada recentemente e contou também com ampla participação da comunidade cientifica na sua elaboração.

Uma vez que a pesquisa com material cientifico de coleções biológicas requer frequentemente um intercâmbio internacional, conhecer os aspectos legais deste procedimento e igualmente essencial para a comunidade cientifica.

Como no caso das licenças de coleta de material biológico em território nacional, o processo de obtenção de uma licença de transporte de material biológico para o exterior também exige comprovação da natureza cientifica da solicitação, bem como da qualificação do pesquisador e das respectivas instituições de origem e destino do material.

Embora o andamento desses processos ainda seja mais lento do que aqueles relacionados a autorizações para coleta em território nacional, a legislação Brasileira em vigor ampara completamente o pesquisador na sua atividade internacional de pesquisa com material cientifico de coleções biológicas e não existem justificativas válidas para a não observância dos procedimentos pertinentes.

Novamente, o problema é a distancia que existe entre a concessão da licença em Brasília e a fiscalização nos portos e aeroportos de todo o país. Tornou-se internacionalmente célebre o episódio infame da destruição de material biológico de uma coleção cientifica apreendido num aeroporto internacional Brasileiro por fiscais do Ministério da Agricultura (MA).

Diante da falta de preparo de boa parte dos agentes fiscalizadores de portos e aeroportos para lidar com a questão de transporte nacional e internacional de material consignado a coleções cientificas, fica fácil compreender que, muitas vezes, licença nenhuma, por mais legítima que seja, vai impedir que um pesquisador seja considerado e tratado por fiscais como criminoso e biopirata em potencial.

É, portanto, impossível, a partir de notas curtas publicadas pela grande imprensa, saber com certeza se um determinado episódio de autuação de pesquisador por crime ambiental é verídico ou se trata de um equivoco por parte de agentes fiscalizadores, que não foram capazes de avaliar a documentação apresentada pelo pesquisador. Diante de pouca informação, ambos os cenários são igualmente prováveis.

O conflito entre a comunidade cientifica e os agentes fiscalizadores da legislação, tipificados pelos agentes do Ibama, é fundamentalmente causado pela discrepância que existe entre a legislação em vigor sobre coleta e transporte de material biológico dentro e fora do país (considerada adequada pela comunidade cientifica) e o seu cumprimento e aplicação, tanto por parte dos fiscais, quanto por parte da própria comunidade cientifica.

Para que as leis sejam cumpridas a contento, é necessário um compromisso de ambas as partes, com a concomitante mobilização do MMA, MA e Ministério da Justiça (MJ) e dos vários segmentos interessados da comunidade cientifica, no sentido de disseminar para um público o mais amplo possível as seguintes informações básicas:

(1) o que é e para o que serve a coleta cientifica de material biológico;

(2) qual é a legislação vigente que regula a coleta, transporte e utilização de material cientifico pertencente a coleções biológicas no Brasil;

(3) qual é o perfil do profissional ligado à coleta e ao transporte de material biológico consignado a coleções biológicas e

(4) quais são os direitos e deveres de pesquisadores e agentes fiscalizadores durante operações de fiscalização de material biológico destinado a coleções cientificas.

Somente depois dessa campanha nacional de informação será possível para a sociedade Brasileira reconhecer, da maneira mais justa e objetiva possível, a distinção fundamental que existe entre biopiratas, criminosos ambientais e pesquisadores.


Data: 02/05/2006