topo_cabecalho
ARTIGO - As fortalezas privadas, os ladrões e a seleção

Hiran de Melo*

 

Na cidade em que nasci existia uma casa de muros altos, janelas com grades... muito triste. Era a única que existia com este formato arquitetônico. Chamava-se cadeia pública e ninguém gostaria de um dia ir lá, nem para visitar um parente ou amigo. Apesar de ser pública.

 

A gente vivia em casa de muro baixo, quando este existia. Era um tempo em que a porta da casa só era fechada, e parcialmente, devido à presença de animais soltos na rua. Fechava-se apenas para evitar que eles entrassem à toa.

 

E as janelas? Viviam quase sempre abertas e voltadas à rua. Portas e janelas só eram fechadas, de verdade mesmo, quando todos iam dormir. E, devido ao medo que nos causavam as almas penadas do outro mundo.

 

Quem não viveu este tempo pode não acreditar no que eu digo. Mas, ainda hoje, este descrente, pode ir verificar e comprovar o que afirmo na cidade de Lucena - PB, durante o veraneio.

 

Nesta cidade, assim como em outras litorâneas do nosso estado,  é assim mesmo. Aliás, é até mais. Muitos dormem nas varandas da casa, quando elas existem. Não há necessidade de fechar nada, até porque fica difícil dormir com tanto calor.

 

Você pode tá imaginando que existe a Polícia Militar por todos os lugares, em todos os cantos das paredes. Negativo. Ao contrário, o que de menos se vê é um policial. “Mas, que coisa estranha!” dirá você. Aguarde um pouco, eu já lhe explico. Espere, porque preciso antes falar de como é a minha cidade agora. Certamente bem parecida com a sua.

 

Hoje, e desde alguns anos, aqui na minha cidade não é mais assim. Não existe apenas uma cadeia. Ao contrário, a cadeia virou modelo arquitetônico. Todo mundo vive preso nas suas casas, de dia e de noite. As casas são cadeias "voluntárias" e privadas. Se paga para viver preso.

 

Depois de dois assaltos a minha residência fui convencido a incrementar o presídio privado. Agora, além da cerca elétrica, coloquei câmaras para registrar tudo, vinte e quatro horas no ar.

 

Para começar, coloquei duas câmaras voltadas à rua. São para que eu veja, pelo celular, se é seguro parar em frente da minha casa. Qualquer movimento suspeito, passo como se não soubesse onde moro. E, pelo celular, aviso aos de casa que há algo suspeito. O mesmo vale quando vou retirar o carro da garagem.

 

Só saímos da nossa casa por absolutas necessidades sociais, econômicas, educacionais e de saúde. Se não, viveríamos todos aliviados na nossa fortaleza, na nossa cadeia. Aliviados apenas por que fora dela a probabilidade de ser violentado, há qualquer instante, é muito grande. Em casa, não estamos seguros, é verdade. Todavia, a probabilidade é menor.

 

Quem diria que tudo mudaria tão rápido e como iríamos nos acomodar sem grande alarde? Morar em uma prisão domiciliar e pagando para mantê-la era impossível de ser querido ou imaginado. Além disso, só os policiais e os ladrões podem andar armados.

 

Os primeiros por dever de ofício e os segundos, também. O cidadão comum não deve portar armas. A lei é muito restritiva para quem precisa se defender. O que em última instância, todos nós. Lembre-se que os ladrões, também, precisam se defender deles mesmos.

 

Para quem se acostumou com esta arquitetura e este estilo de vida acha tudo muito natural. Mas, para quem brincou na rua, com toda a liberdade de ir e vim, sente muita dor. A dor de não poder vê os filhos correrem livres, soltos e seguros na rua - como extensão da sua casa.

 

“Certo! Você já sabia de tudo isso, mas cadê a explicação prometida?” Indagará você, com toda razão. Eu não sei lhe responder com a autoridade de um estudioso do assunto, mas vou arriscar uma hipótese, um palpite.

 

Os que moram no interior possuem um fascínio pelo literal, pela praia. A gostosa sensação de ser livre, andar quase nu por todos os lugares. Então, quando chegam as férias, em janeiro, não há como não sair "voando" para Lucena ou qualquer outra cidade que possua praia.

 

Claro, deixando as suas fortalezas menos protegidas e assim convidando os ladrões e se servirem à vontade. Por que, então, eles iriam incomodar os veranistas?

 

Por outro lado, estes ladrões desempenham uma importante função para a manutenção da atual forma de produção de bens de consumo. Os assaltados terão que comprar novos utensílios domésticos, novos aparelhos eletrônicos, etc. E, assim, contribuem para a geração de riquezas.

 

Em 25 de janeiro deste ano fiquei muito aborrecido porque assaltaram a minha residência, quando eu estava na praia, e furtaram dois notebooks, dois aparelhos de TV, uma bike novíssima (tão nova que eu ainda não a havia usado), uma máquina de cortar grama, um aspirador de ar, um lava jato, um celular, um violão...

 

Fiquei indignado, de início. Depois, fiquei agradecido. Afinal, não houve agressão aos meus familiares - nem seria possível, não estavam em casa. E, fui incentivado a comprar tudo outra vez, só que agora passarei a ter tudo novo e no modelo da onda.

 

Vejo, tudo isso, apenas como um imposto a mais que tenho que pagar para manter o nosso jeitinho de ser brasileiro. E, agora, com a Copa do Mundo, você pensa que vou ficar em casa defendendo-a? Tá doido! Vamos todos juntos, pra frente Brasil, salve a seleção!!!!

 

* Hiran de Melo é professor da UFCG

 


Data: 18/06/2014