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Artigo - Como aprender sem ouvir o outro

Hiran de Melo

 

Existia, e ainda existe, uma ladeira enorme que vai do bairro de Nova Brasília ao sítio Vargem Grande. Pelo menos, era assim que se chamava a pequena propriedade rural do Tio João.  Por ser pequena, não era tida como uma fazenda; por não ser tão pequena, não era tida como granja.

 

No seu sítio, Tio João plantava de tudo; logo, colhia de tudo. Além de criar gado, galinhas e outros. Portanto, não havia necessidade de ir à cidade de Campina Grande para comprar alimentos. Nem para comprar medicamentos, as ervas curavam de tudo.

 

Sair aos domingos pela manhã na direção do sítio do Tio João, era bom demais! Lá, além da boa comida, havia diversão e arte. Esperávamos, na varanda, o dono do pedaço com um sorriso largo de satisfação. E nós, levávamos a certeza de que seria um dia de muita satisfação e aprendizagem.

 

A satisfação já começava na descida da ladeira, esforço mínimo, sol a menos, algumas sombras das árvores, que invadiam por cima a estrada, mesmo que nem fariam falta se não existissem. Havia em abundância juventude nas pernas e no coração de cada um de nós.

 

Em verdade, nada faltava mesmo. As sombras estavam por acréscimo. Bom, se voltássemos antes das três da tarde, até que elas seriam mais do que um simples acréscimo. Havia uma longa ladeira a subir e barrigas cheias clamando por digestão.

 

Mas, confesso que logo-logo a caminhada terminava sem que nem sentíssemos o esforço para subir a ladeira. Era que cada um tinha muitas coisas a relatar. A realidade registrada ao modo de cada um ver, encantava quem relatava e fazia com que cada um aguardasse a sua vez.

 

Ah! Mas, antes de adentrar as plantações do sítio e nos deliciarmos com uma variedade imensa de frutas frescas - tiradas na hora do pé - havia a sessão de perguntas. Na varanda, sentado na cadeira de balanço, Tio João iria comandar a festa, tal qual um palestrante do outro mundo.

 

Do outro mundo porque o Tio João raramente saia de casa, do sítio, e, penso, pouco fora à escola. Tudo que sabia havia aprendido por conta própria, na escuta, nas ondas de radiofrequência e nas leituras dos livros que lhe caiam nas mãos. Lia tudo como um menino pleno de curiosidade.

 

Entretanto, já não era época de escuta. Estava saturado de tantas informações e saber. Era época de jogar fora tudo que sabia. Distribuir como quem distribui chuvas. Não escolhia terreno para molhar. Embora elogiasse muito quem sabia ouvir e calar.

 

Ele me fazia uma pergunta e antes que eu pudesse pronunciar a primeira palavra, ele já estava dando a resposta, e no final agradecendo por ter aprendido muito comigo.

 

No começo, embora me sentido importante como professor de um sábio, estranhava aquele tipo de coisa. Depois compreendi melhor, a gente aprende muito mais com quem nos permite falar, do que com quem nos quer ensinar qualquer coisa.

 

Assim é que pude observar que cada vez que ele respondia a mesma pergunta - que ele mesmo havia feito em outra oportunidade - o fazia de uma maneira diferente e mais rica.

 

Então, para quê melhor? O homem fazia as perguntas e dava as respostas, nem nos incomodava com o silêncio de quem espera respostas inteligentes. E sorrir das bobas que escuta.

 

O que nos restava fazer, fazíamos com grande prazer: nos espreguiçar nas espreguiçadeiras antigas e gostosas, mantendo os ouvidos atentos.

 

Lá para tantas, Tio João dava por encerrada a sessão de perguntas e respostas, agradecia pelo que ele havia aprendido conosco e, assim feliz, nos encaminhava para a segunda delícia do dia: a cozinha da casa.

 

Era hora de tomar café com bolacha melada na manteiga da terra, tudo feito no sítio. Em verdade, não era hora de comer, mas de se deliciar. Não havia pressa, não teríamos nenhuma tarefa a desempenhar que exigisse trabalho.

 

Barriga cheia, estava na hora de estirar as pernas. Hora de ir ao quintal da casa. Aprazermos com as sombras de árvores centenárias; apreciar as galinhas catando a terra, indiferentes a nossa presença e sentir o ócio de um cachorro deitado no chão, com mais preguiça do que todos nós juntos.

 

O tempo deslizava sem urgência nenhuma. Era só esperar a hora do almoço. Enquanto isso não chegava, ia se jogando conversa fora, papo descompromissado sem qualquer sentido ou conteúdo inédito.

 

- E Dona Creusa, com vai? - Vai bem, obrigado. - E os seus estudos... vai passando de ano? - Tudo bem, vão dando para os gastos, já estou fazendo o ginasial. - Muito bem, gosto de ver assim...

 

Por brevidade vou pular o almoço, não vou desta vez relatar como era. Vamos direto ao passeio, pós almoço, pelo sítio. Hora de colher frutas no pé. Todo mundo podia tirar à vontade, tudo que pudesse comer. Nada de desperdícios e nem de levar para comer outro dia.

 

No final, lá no fundo do sítio, havia uma plantação de cana de açúcar. Aquilo não era para amador. Tio João fazia o trabalho sozinho. Cortava a cana. Levava no ombro e voltávamos para o quintal da casa. Lá existia um moinho.

 

Lá, na barriga de cada um, haveria ainda de ter um lugarzinho para acolher o caldo de cana com pão doce, tudo na hora, tudo feito com amor. E, como é próprio do amor, de graça.

 

 

Hiran de Melo é professor da UFCG


Data: 30/04/2014