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Artigo - O sadio odor do estábulo

Wagner Braga Batista

 

Na Idade Média, infundiu-se a crença que o cheiro dos estábulos era terapêutico.  

A simples proximidade dos estábulos não só exercia efeitos curativos. Supunha-se que aqueles que se mantivessem à cerca de quem possuisse alimárias também gozariam dos beneficios da proximidade do poder.  Estariam a salvo das doenças, das desgraças comuns a todos mortais e obteriam prestígio.

Esta crendice venceu o século das luzes.  Varreu o século seguinte para ser superada com o desenvolvimento da ciência e das técnicas. As novas tecnologias e a pesquisa identificaram microorganismos presentes nas fezes de animais, que provocavam o mau cheiro e eram a causa de desenlaces controversos, de doenças e de suas curas.

O cheiro, não era sadio. Era apenas fétido.

Infelizmente, o conhecimento não evitou o contágio pela força dos mitos. O mau cheiro, o desconforto e a compulsiva busca de prestígio e de poder ainda são contagiantes .   

A recente querela sobre a EBSERH nos remete ao cheiro dos estábulos e ao contágio pelo fetiche dos mitos.  Relembra suposta ação saneadora de agencias reguladoras, que conteriam a imprevisibilidade e a manipulação de forças do mercado, que, no entanto,  cederam a elas. Cujos dirigentes deixaram-se contagiar por seus estimulos e atrativos. Ao invés de propiciar o controle público, converteram-se em celeiros de corrupção, em esteios da venda de favores e do enriquecimento ilicito, obtidos graças à subtração de direitos sociais alavancada pela privatização de instituições públicas.

A EBSERH restaura o mito de que a solução para problemas de saúde advém do mau cheiro do estábulo. Do odor que rescende do gerenciamento privado. Ignora o caráter, as condições e a destinação des serviços de saúde para fazer prevalecer a terapia que não cura e um atestado de inépcia dos que administram a universidade, posto que reconhecem-se incompetentes ou impotentes para administrar suas unidades. Esta lógica transfere centros de decisão estratégica de dentro para fora da universidade.  Substitui o exercício da democracia, a prática participativa e o controle público pelo vezo gerencial, pelo método discricionário, pelo corte tecnocrático que aparta detentores do poder de decisão dos responsáveis pela sua execução.

Este é o sadio odor dos estábulos rescende de gabinetes ministeriais, de anomalas organizações empresariais que mal escondem seu mister privatista. É o cheiro da falsa modernidade que impregna a universidade.  Apresenta-se como solução sinistra que aniquila potencialidades da universidade pública, assim como falsificadores de moeda asseguram seu inquestionável poder de compra.  Neste imbróglio, a ilusão gerada pela EBSERH se manifeta no signo e na relação mercantil que enseja .

É deplorável que a universidade pública torne-se caudatária desta esparrela.  Que oambiente acadêmico, suscetível à reflexão, seja obrigado a lidar com o sim e o não, sob o efeito da chantagem empregada aplicada a administradores que se curvaram às conveniências. É triste assistir a prática de subterfúgios, a suspensão do dialogo, para que está lógica se imponha inetivável consequencia dos fatos. É deprimente ver a comunidade universitária declinar de suas aptidões, da capacidade de elaboração crítica para ceder à mistica do mercado e do gerenciamento privado

Este ambiente desvelador, afeito à produção e à disseminação do conhecimento critico e alternativo, cedeu à farsa.  Deixou-se contaminar ela mística de susperstições medievais.  Permitiu que se instituisse o mito em detrimento da razão, de compromissos e de responsabilidades inerentes aos que se propõem administrar a universidade pública.

 Este desatino só se tornou factível por meio de malabarismos. O que era,  deixa de ser. E o fato se impôs sem compromisso com a História. Deste modo, efeitos converteram-se em causas, tornaram-se explicações ou justificatificativas para esta grotesca genealogia da administração externa, que se sobrepõe aos que administram a universidade.

Enfim, o Hospital Universitário, para o senso comum, não é visto como espaço de realização de direitos sociais.É interpretado como locus da conveniência, como um lugar em que as prerrogativas de uma infinidade de médicos e de servidores esbulham estes direitos. Daí prevalecer a idéia da intervenção saneadora praticada por entes privados, que justifica a privatização, porquanto os responsáveis historicamente por este processo de acobertamento desvencilhem-se de suas responsabilidades. Mantenham-se incólumes e se apresentem como agentes da ação terapeutica.

O acordo tácito que se viabilizou ao longo de anos deve ser identificado como uma política administrativa danosa à universidade pública. Assegurou a cristalização do poder, a manutenção de forças que se serviram do HU e da UFCG para faze valer interesses restritos. Hoje, nào podemos ignorar este processo tortuoso e entender que a solução do problema consiste em abandonar o HU à propria sorte.

A reversào deste quadro exige a mobilização da comunidade e o controle público de uma instituição que está habilitada a prestar relevantes serviços à população.

A nosso ver, este desconforto geral tem origem em cultura perdulária, que se instalou na universidade, que priorizou o carreirismo e premiou ações que resultem em pecúnia, em dividendos financeiros. Esta cultura ignora objetivos, a qualidade e valores indispensáveis à educação, impede que  se transforme em fonte de emancipaçào social.

Neste contexto, o mito do poder e do prestigio academico se afirmaram pela capacidade de ascender administrativamente a todo custo, de emprender galgando os patamares definidos circunstancialmente por instrumentos de politicas de governo e pela habilidade de se desvencilhar de qualquer escrúpulo para fazer valer estes popósitos.  Este recurso   instrumental tornou-se regra comum em instituições públicas em prejuízo de sua função social.

Na UFCG estamos enfrentando uma situação deveras difícil.  

Está havendo uma inversão dos fatos.  Os que afrontam a democracia, a autonomia e a integridade da instituição, ora arrogam-se da condição de seus defensores . Pior, transformam o desrespeito a decisões democráticas numa regra de conduta. Deste modo, colocam em descrédito  processos e organismos responsáveis pela sua viabilidade. Criam o ambiente favorável a instalação de métodos autocráticos e da política do fato consumado.

Não somos favoráveis à tática da obstrução, da interdição, do silêncio e da ausência que operam os fatos consumados.

De longa data, argumentamos que o grande desafio que se apresenta para os que defendem a universidade e a educação pública é sua efetivação num meio adverso no qual o absenteísmo e a indiferença ganham vulto. Beneficiam-se do defiti de compromissos e responsabilidades.

Argumentamos que, ao invés de fechar a universidade, devemos abrir suas portas. Devemos torná-la acessivel e permeável a participação de setores da sociedade que anseiam e carecem de suas potencialidades. Portanto, a nosso ver, a grande questão que se apresenta para todos que defendem a educação pública é como potencializar a universidade pública. Como torná-la acessível? Como estabelecer a compatibilidade de suas atribuições e propósitos com suas ações. Como efetivar este compromisso, integral e coerentemente, com sua função social e emancipatória.

Portanto, vimos como uma temeridade a decisão de fechar o campus de Campina Grande, da UFCG, apesar de adotada, democraticamente, pelos três segmentos. E aí, cabe uma ressalva, fizemos ressalvas, porém também procuramos resguardar nosso  compromisso democrático.

Integramo-nos aos participantes desta iniciativa.

Diante do quadro que se configurou, face às fragilidades evidentes do movimento que implementou esta ação e à iminência de confrontos, com desdobramentos imprevistos, colocamo-nos do lado dos que defendem esta instituição pública.

Surpreendeu-nos, a postura da sua administração. Se por um lado, teve atitude cautelosa, ao não acionar a força policial, por outro, omitiu-se. Não procurou evitar contenciosos que se desenhavam.

O resultado foi lamentável. Reproduzindo a situação precedente, não houve tentativa de diálogo e de mediação. A sensação que subsistiu é que admistração superior apostou que a obstrução se reduzisse ao embate entre os que queriam entrar  e os que queriam manter fechada a universidade. Deste modo, a campanha em defesa da educação e da saúde pública teria visibilidade pela imagem produzida por confrontos verbais e pequenos incidentes.

Esta visão foi capitalizada por setores conservadores. Por meio de malabarismos transformaram-se em “vitimas de arbitrariedades” .

Neste quadro insólito, instalou-se um inusitado consenso. Todos criticavam. Os prós e contra a obstrução da universidade manifestavam seu descontentamento com  a atitude discricionária e a omissào dos que administram a UFCG.

É preciso que o diálogo seja retomado. A espada de Dâmocles não pode pairar permanentemente sobre a universidade.

A administração superior está bastante desgastada e as entidades de representação dos três segmentos correm o risco de cair no isolamento. Faz-se oportuno que as entidades repensem sua estratégia e se mostrem capazes que conferir a real importancia, a visibilidade e a amplitude necessárias à campanha em defesa de direitos sociais e de instituições públicas.

Nào apostamos no desgaste da administração de instituições públicas, que tende a enfraquecê-las, torná-las vulneráveis e suscetíveis a intervenções, ora questionadas. Ao invés de sedimentar equivocos, devemos resgatar compromissos coletivos e públicos com estas instituições. Ou seja, ao invés de apostar no fracasso, devemos resgatar compromissos públicos firmados por componentes da administração superior.

A perspectiva do desgaste, involuntariamente, contribui para a corrosão de estruturas indispensáveis a  instituições públicas, legitima a lógica empresarial,  soluções que desqualificam a democracia participativa e o controle social destes institutos.

A questào em tela não pode ser rebaixada à intencionalidade e à indole de indíviduos, nem tampouco a ataques pessoais. Seu pano de fundo è abrangente e complexo. Requer análises mais aprofundadas que explicitem projetos, nexos e objetivos que estão em jogo. Que viabilizaram que no espaço público se afirmasse a opção preferencial por interesses privados. Estes projetos devem ser explicitados e desmontados para que a educação e a saude pública se afirmem como direito de todos.

Este deveria ser o foco das forças comprometidas com o destino da UFCG. Neste embate, que ora está se travando, quem ganham sào os indiferentes, os que migram de posição por conveniência e, a seu modo, contribuem a miúdo, veladamente, para consumar a privatização da universidade. Estes sào os únicos vencedores. Toda a comunidade universitária estará sendo derrotada se nào fizermos da instituiçào de ensino pública a nossa trincheira. Se o embate enveredar por trilhas que o convertam numa luta sem quartel.

Apesar dos ressentimentos, é preciso retomar o diálogo. Devemos nos enxergar como interlocutores com posições diferenciadas, Se antes nos víamos como companheiros, nào podemos deixar que ardis, que hesitações e atitudes questionáveis nos transformem em irremediáveis  inimigos.

A decisào unilateral da Reitoria deve ser revista e revogada democraticamente. Sem desrespeito de orgões de deliberação da universidade, cujos integrantes foram eleitos com esta finalidade.

Deve ser revogada porque é ilegitima. Porque feriu pronunciamentos e deliberações de diferentes entidades, qualificadas, contrárias à adesão da UFCG a EBSERH.

Os que queriam rediscutir a posição contrária do CONSUNI à adesão à EBSERH, pelos mesmos argumentos utilizados anteriormente, por coerência e dever de consciência, obrigam-se a rever decisão unilateral da Reitoria. Nào é demais frisar,: as ações administrativas do Reitor se  subordinam ao CONSUNI,  Orgão de Deliberação Superior  da Universidade.

Precisamos, superar nossos mitos e crendices.  O cheiro do passado, o odor de estábulos não podem se impor como remédios, como falsas alternativa salvacionistas. O arbitrio e a superstição nào podem embotar o exercício da reflexão, da razão e da interlocução.

O cheiro do estábulo não é sadio, nem cura. Na universidade pública estamos sendo  concitados a trocar o autoritarismo, o obscurantismo e a tática do confronto pela consequente estratégia do convencimento.

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 08/04/2014