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ARTIGO - O direito de consumir e o direito de viver

Wagner Braga Batista*

 

No atual contexto, a hegemonia liberal estimula a realização de relações eminentemente mercantis, que degradam a sociabilidade. A ascendência dos negócios e do lucro, interpretado como premiação pelo êxito econômico, subordina a sociabilidade  às vicissitudes de vantagens obtidas por meio de relações circunstanciais. Práticas e valores humanitários são desqualificados. Nâo têm lugar neste universo, no qual a percepção da vida e da sociedade limita-se a identificar apenas sinalizações artificiosas produzidas pelo mercado.

 

Esta lógica regressiva subverte direitos sociais, declarados universais. Converte-os em prerrogativas de poucos que estão habilitados a consumir.  

 

Por meio desta engrenagem, o acesso a direitos sociais inalienáveis torna-se exclusividade de quem está apto a comprar bens e serviços, indispensáveis à vida humana. Esta distorção mostra-se mais contundente se verificarmos que estes bens sequer focalizam e contemplam necessidades básicas de seres humanos, uma vez que são eleitos e produzidos em conformidade com estratégias restritivas de marketing que selecionam potencialidades de consumo.

 

No entanto, esta digressão da economia gera a ilusão de que o consumidor tem o direito de escolha de itens e de formatos de produtos. Sugere que os contemplados pelo direito de consumir participam de uma nova forma de democracia engendrada pelo consumo, pelo jogo aleatório e excludente das forças do mercado.  

 

Sob a ótica liberal este processo restritivo, com visível desfiguração de direitos sociais, foi denominado de democratização do acesso. Esta nova modalidade de democracia expressa-se pelo paradoxo, inequívoco e contundente, que condena aqueles que ão dispõem de poder de compra à privatização do acesso. Ou seja, de forma controversa institui a privação de direitos. De forma emblemática pode ser evidenciado pelas assimetrias injustificáveis dos sistemas de saúde e educacional no Brasil.

 

Indicadores numéricos, que anunciam a expansão do contingente de contemplados com a acesso à saude e à educação por meio desta escalada regressiva, não explicitam a ampliação das assimetrias constituintes deste modelo. Escondem a reprodução exponencial das desigualdades, evidenciadas pela diferença da qualidade na oferta destes direitos adquiridos no mercado de bens e de serviços. Ou seja, amplia-se a educação e saúde de baixa qualidade destinada a contingentes de baixa renda, aos cidadãos precarizados, e, como contraponto, observam-se serviços de alta qualidade ofertados aos verdadeiros cidadãos, detentores de elevado poder aquisitivo.

 

Este modelo restaura e refina desigualdades inerentes a esta sociedade iniqua. Reproduz, amplia e legitima  recortes tipicos da sociedade capitalista .

 

A realização assimétrica de direitos, mediada pelas forças do mercado, reveste-se de uma aura que sacramenta relações excludentes. Sob o rótulo de democratização do acesso à educação, saúde, transporte, entre outros, diferencia e restringe direitos elementares,.

 

Por meio desta sutil digressão induz à ideía de que o acesso a direitos irredutiveis se realiza por meio deste paradoxo. Qual seja, graças à imprevidência, às mãos invisiveis, à imponderabilidade das forças messiânicas do mercado que premiam homens de bem e punem os fracassados, os inempregáveis, os párias, os excluídos, entre tantas designações aplicadas a seres humanos incapacitados para dinamizar as forças do mercado.

 

Todos devem ser autonomos, empreendedores e competitivos, uma vez que a cooperação e a solidariedade entorpecem. Freiam e dificultam o desenvolvimento de pulsões competitivas instauradas pelo conflito de interesses e pela emulação do lucro. Mecanismos e ações que se proponham a resguardar ou restaurar a sociabilidade são alvo das críticas liberais.

 

Daí advém o questionamento da ação do Estado, do esforço de planejamento,  das politicas públicas de abrangencia universal, entre outras inciativas relevantes, que minimizam a intervenção privada, a anarquia economica, a imponderabilidade, os riscos e beneficiam individuos em detrimento do conjunto da população, que se torna refem do jogo aleatório de forças do mercado. .

 

Sob a ótica liberal, a direito à cidadania é exercido mediante relação de clientela, por meio da qual o detentor do direito se converte em credor, ao credo no mercado, à fé na clientela e à fidelidade no consumo de bens e de serviços, proporcionadas por estratégias seletivas  de marketing.

 

Esta digressão implica na crescente desqualificação, deslocamento e esvaziamento de instituições públicas, destinadas à realização de direitos irredutíveis e universais.

 

A atrofia da esfera pública tende a conferir vulto à iniciativa privada. Legitima a criação de organismos anôalos, tipo Fundações, Organizações Sociais, Parcerias Público-Privadas, Organizações não Governamentais, enxertos de gerenciamento privado e restrititivo em instituições públicas, entre outros. Inicialmente apresentam-se como fontes suplementares de provisão de  direitos. A seguir, subvertem a função social e o caráter público destas instituições, imprimem as técnicas de gerenciamento incompativeis com a gestão democrática. Apagam todos os resquícios de autonomia de controle social para se afirmar pelo que se propõem, como estruturas desenhadas para subsitituir instituições públicas remanescentes do enxugamento neoliberal.

 

A contra-reforma liberal questionou o Estado Previdenciário, propôs sua minimização, a transferência de serviços afetos à esfera pública para a iniciativa privada e legitimou a mercantilização de direitos básicos, entre os quais os direitos à saúde e à educação.

 

A escalada privatizante, empreendida pela restauração liberal a partir da década de 1980, formulou novos conceitos e promoveu novos patamares para o exercício da cidadania. Associou a cidadania ao acesso a novos padrões de consumo e realização de direitos sociais por intermédio de mediações efetuadas por empresas e agencias de prestação de serviços  privadas.

 

A crescente privatização e a mercatilização de direitos sociais forneceu estofo ao que se denominou democratização do acesso à saúde e à educação, a partir da década de 1990, no Brasil.

Este tendência não foi revertida, amplia-se extraordinariamente.

 

Houve vertiginosa expansão da oferta de serviços de saúde por grupos privados, bem como a inversão da participação do setor público e privado na oferta de vagas em instituições de ensino médio e superior no país. Atualmente as instituições privadas de ensino superior respondem por mais de 75% das vagas ofertadas, relação inversa da que se observava na década de 1970. Há apenas 291 IES públicas, frente a um universo composto por 2392 instituições privadas com padrões de ensino bastante diferenciados.

 

A defesa de direitos também sofreu mudança de ênfase no curso da década de 1980. A tônica em direitos sociais e coletivos foi gradativamente subsumida pela ênfase em postulações grupais, residuais e individuais que não tem no horizonte um projeto de sociedade para todos..

 

A defesa de direitos das chamadas minorias ganhou corpo na década de 1980, no Brasil. Diferenciou movimentos sociais pela natureza de suas demandas, pelo seu foco. Movimentos de representação racial, étnica e de genero tenderam a substituir plataformas emencipacionistas por estratégias que consorciam a realização de demandas destes grupos sociais com ainserção no mercado.

 

Este reducionismo circunscreveu a realização de direitos sociais à participação na esfera do mercado. Por meio deste pressuposto, limitou a promoção da cidadania à integração de diferentes segmentos sociais ao consumo de bens e serviços.

 

Esta integração, induz ao pressuposto de que o reconhecimento de diferentes segmentos da sociedade civil implica necessariamente na auto-afirmação de grupos por intermédio de práticas e valores deduzidos da lógica mercantil.

 

As estratégias de marketing encarregam-se de vestir, fomentar, disseminar e sedimentar valores e comportamentos que, em essência, valorizam unicamente sua própria identidade e desprezam a alteridade.

 

A exacerbação do individualismo, da autonomia individual frente à comunidade, da busca desenfreada de prestigio e de poder pessoal, do empreendedorismo restrititivo, que solapa a  cooperação coletiva, da ganância, da concorrencia, que devasta qualquer resquício de solidariedade, são traços desta cultura perdulária patrocinada pelo mercado.

 

Neste contexto, a defesa dos direitos sociais foi gradativamente deslocada por direitos grupais, corporativos, étnicos, entre outros direitos residuais associadas à realização no ambito da economia de mercado e destituidos de qualquer vocação à abrangencia, à universalidade. Converteram-se em demandas restritivas, que ignoram ou desprezam qualquer projeto social abrangente, pautado na noção de equidade.

 

No plano mais geral, demandas pessoais gradativamente substituiram lutas em defesa da coletividade e, no plano sindical, o liberal-corporativismo se afirmou. A defesa de interesses restritos se viabilizou mascarada muitas vezes por roupagens e discursos que dissimulam a consecução de objetivos limitados com apelos e compromissos que não se configuram no dia a dia de entidades de representação de trabalhadores.

 

A perspectiva de vencer na vida e ascender socialmente se sobrepõem á sociabilidade e atentam  contra direitos elementares que conferem dignidade à vida humana.

 

* Professor aposentado da UFCG

 


Data: 27/03/2014