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Artigo - Serra Pelada: um filme que recomeça

Wagner Braga Batista

 

 

Serra Pelada, assim ficou conhecida a jazida aurifera descoberta em 1980, numa fazenda no Pará, hoje situada no municipio de Curionópolis,  denominação que homenageia o Major Curió, responsável pelo sequestro, tortura e assassinato de varios combatentes da Guerrilha do Araguaia (1969-1975).

 

Curió foi interventor militar em Serra Pelada, a partir de 1982.

 

No período de 1982 a 1984, a prolífica jazida propiciou a extração extensiva de quase uma tonelada de ouro por mês.

 

O ouro, oculto nas montanhas de terra e nos alicerces do slencio colocados pelo regime militar, transfigurou-se em indescritivel espetáculo de horror nativo, documentado por Sebastiào Salgado eGodfrey Reggio. Mobilizou o poder discricionário e seus coadjuvantes nas estratégias de medo, o trafico, o contrabando e milicias à busca de concessões ilicitas. Estes agentes desenharam o cenário e a coreografia tenebrosa de Serra Pelada tendo como pano de fundo a brutal exploração do trabalho humano. A busca de ouro provocou a maior mobilização de trabalho braçal sob céu aberto, desde a construção das piramides egípcias. Enquanto piramides eram erigidas para o céu, os abismos de Serra Pelada lançavam milhares de homens nas profundezas do inferno. 

 

“Serra Pelada” (2013), de autoria de Heitor Dhalia, é uma produção cinematográfica meticulosa e harmônica. É reveladora do alto padrão de qualidade alcançado pelo cinema brasileiro. O filme contabiliza excelentes enredo, trama, diálogos e primorosa interpretação de amplo elenco. Vale-se dos recursos cinematográficos para devassar entranhas do jogo de poder que deitou raízes na extração mineral em nosso país.

 

Iustra a conversão de empreendimentos faraônicos, realizados em nome do desenvolvimentismo autoritário, em fontes de captação e escoadouros de receitas ilícitas para fundos de pensão de militares, de dividendos para grandes empreiteiras, de poder de barganha para testas de ferro do capital estrangeiro, de contrabandistas, de traficantes, entre outros.

 

O horror na periferia é dolorosamente real, supera as raias da ficção.

 

O filme é uma sintese realista deste horror nativo, desenhado pela expansão da fronteira agrícola e a exploração extensiva de recursos naturais no Brasil.

 

A redemocratização, acionada pelo movimento de massas ao final da década de 1970, foi  consumada por meio de pacto de elites liberais na década seguinte. Ao invés de inibir, promoveu novas modalidades de tráfico, de poder, de influência, de manipulação de recursos públicos por meio de empreendimentos privados e de regras democráticas, acessíveis apenas aos renomados integrantes dos círculos de poder.

 

O pacto celebrado pelas elites em 1985 não interrompeu o espetáculo de horror nativo. Diversamente do que se esperava,  institucionalizou a exceção como regra herdada do regime miitar. Ao invës de coibir os desmandos, a tortura, o assassinato de trabalhadores rurais, o trabalho escravo, nào rompeu seus elos com o latifundio e a grilagem de terra. No jogo de poder, a mercantilização de  direitos sociais elementares tornou-se moeda de troca corrente.

 

O morticinio, chacelado pela intervenção do regime pelo regime militar, hoje está  imerso nas águas do grande lago que cobrem as escarpas de Serra Pelada.

 

O filme recupera este horripilante episódio de nossa História recente.

 

À epoca, o cinema norteamericano ensaiava a representação da selvageria urbana, retratada pelos serial killers, celebrizados nos anos seguintes, na figura de Jason Voorhees, personagem de Sexta-feira 13 (Sean S. Cunninghan; 1980).

 

Como na serie filmica, que reoroduz horrores nortemaricanos, nossas fantasmagorias ressurgem deste imenso lago e ganham vida na realidade presente.

 

Serra Pelada não é uma imagem remota é a transfiguração da sociacibilidade possivel. Expõe a disjunção da sociabilidade no centro e nas periferias do sistema vigente. Revela entranhas deste arcabouço socioeconomico, que se mostra consciencioso com os favorecidos, mas extremamente perverso e iniquo com a grande maioria da  população. Denuncia o genocídio artesanal, praticado em massa nos guetos da sociedade higida pelos jagunços, milicias e esquadròes da morte. Remete ao trabalho flexivel e precário, que desmente a sociabilidade do capitalismo civilizado tupiniquim. O capitalismo que articula a miséria humana às sinalizações de opulencia, obtidas com o ouro extraído das periferias. Escavado no terreno árido da especulação financeira, em áreas devastadas  pelo agro-negócio, em regiões contaminadas pela extração mineral, no torridos fornos de carvoarias clandestinas, no solo da mão de obra barata proveniente das favelas, no trabalho aviltante arrancado de cortiços, de habitações insalubres onde mora a exploraçào de crianças, de fábricas da degradação humana que abrigam a escravidão contemporânea. Estas são as vias que pelas quais o ouro se converte em luxúria e opulência nos grandes centros de financeiros internacionais.

 

A nossa serra pelada cotidiana nos incomoda. Oferece-nos imagens veladas pela democracia tardia, que ainda não se consolidou no país. Pelos consensos indecorosos e acordos festejados por oligarquias ao custo do sacrificio de grandes contingentes populacionais

 

Nossas serras peladas se reproduzem graças à preservação do patrimonialismo e à sistemática troca de deferencias entre elites, guardiãs dos chamados poderes republicanos.

 

A montanha de ouro, oculta pelas aguas profundas da cumplicidade, antecipa os fraudulentos leilões privatizantes das Vales do Rio Doce, entregues como sesmariais aos Eikes do capital estrangeiro.

 

Convivemos com nossas serras peladas, resguardadas pela transparente opacidade de governos de coalisão, pela licenciosidade de tribunais que grafam justiça com letra minúscula e pela crescente privatização, avulsa e à varejo de instituições públicas.

 

Além destas, abrigamos nossas serras peladas íntimas, confinadas na privacidade de nossos domicilios.

 

Numa passagem do filme, um personagem se indaga sobre o papel dos sonhos e das realidades em nossas vidas. Conclui sugerindo que somos o que a realidade exasperadora nos permite ser.

 

Como nos sucessivos episódios aterradores de Sexta Feira 13, somos levados a supor que as cenas dramáticas de nossas serras peladas não se encerram no final do filme. Clamam por outra realidade.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 12/11/2013