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ARTIGO - O professor e os sinais da ruas

José Edilson de Amorim*

 

Quando comecei a ler sobre educação, aprendi que havia três instituições que eram as principais responsáveis pela formação das crianças e dos jovens: a família, a igreja e a escola. Essas instituições eram laureadas com a imagem, sempre repetida, de pilares da civilização.

 

Talvez, nessa imagem, estivesse o pressuposto desejado de que a igreja era única e era a nossa; a família era um modelo íntegro e a escola era uma comportada extensão de ambas. Com um modelo assim, parece que o Estado sabia o que queria: formar cidadãos à imagem e semelhança desse modelo e conformados em seu interior.

 

Não sabemos se isso era inteiramente verdade; sabemos, porém, que, hoje, a verdade da nossa igreja se decompôs em várias verdades espalhadas por dezenas de igrejas ouvidas por milhares de pessoas. A família não segue padrão único e subsiste sob as mais variadas configurações. E a escola? Claro que a escola também mudou - os modelos proliferaram e se firmou um ensino focado, pragmaticamente, na conquista de uma carreira de sucesso profissional.

 

Intervindo nos compassos e descompassos dessa trajetória institucional, aí resumida, o pensamento crítico de, inspiração marxista e ou humanista em geral, buscava a desconstrução do discurso do Estado, flagrando a inconsistência do ideal que este professava em face da realidade que se impunha. Essa militância histórica acompanhou as transformações das instituições acima caracterizadas, intervindo no sentido de inverter o vetor, ou seja, formar, criticamente, o cidadão na direção contra-ideológica em relação ao Estado. O Estado rezava pela cartilha e Maquiavel e empolgava parte da sociedade com isso; outra parte, insubmissa, aprendia na bíblia marxista.

 

Nesse percurso, o Estado também se viu obrigado a mudar; teve que ceder, de um lado, à pressão que resultou na ampliação do espectro ideológico das organizações sociais; de outro, cedeu à voracidade do mercado. Vivemos, então, uma experiência paradoxal: a mais ampla diversidade de espaços de atuação política assiste à mais avassaladora ação de pasteurização do mercado. Nesse quadro complexo, o Estado centralizador e autoritário não conseguiu se manter inteiriço; a esquerda tampouco completou seu projeto.

 

Esse é o mundo que a modernização capitalista criou e que a modernidade plasmou como um mundo contraditório, pleno de impasses e de promessas; um mundo feito com a presença marcante do capital industrial, mas também com a presença apaixonante da dimensão utópica. Um mundo em que o domínio sobre a natureza e sobre as pessoas era a preocupação principal da ciência, interessada no conhecimento de uso pragmático. Nos bastidores desse mundo, esteve a escola; no centro desta, o aluno e o professor. Nesse mundo, parece que o capital já havia definido quem era centro e quem era periferia.

               

O mundo, hoje, ainda é assim? Muita coisa indica que não. A modernidade tomou outros rumos. A velocidade das comunicações, o estilhaçamento das convicções e a liquidez dos afetos nos empurram, como numa vertigem, para o lugar-nenhum da fragmentação.  A ciência não se faz sem desconfiança; o processo de globalização das atividades industriais, comerciais e culturais promoveram a desfaçatez sem limites do capital que, sem cerimônia, produz onde a mão de obra é semiescrava, vende onde o câmbio é favorável e investe onde encontra paraíso fiscal.

 

Hoje, a noção de centro e de periferia perdeu sentido. No mesmo lugar, estão a civilização e a barbárie, a produção e a escassez, a inclusão e a exclusão, o luxo e a sobriedade.

 

Em momento algum da história, as pessoas produziram tanta informação; mas, contraditoriamente, nunca nos sentimos tão atônitos. Todos os conhecimentos, sobre todos os aspectos da experiência humana, estão ao alcance de cada vez mais pessoas, mas nunca os jovens parecem se sentir tão sem rumo. As mídias e as redes de e de comunicação informam cada vez mais; mas, cada vez mais, também conformam e deformam.

 

Em uma palavra, a fragmentação é a síntese das experiências sociais que evolvem a todos. Isso aumenta em muito a responsabilidade da escola e a do professor.

 

 Mas alguma vantagem se pode tirar desse quadro vertiginoso: se a modernidade demarcou bem as noções de centro e de periferia, o conhecimento contribuiu, decisivamente, para desfazer esses limites. E  isso, além de  aumentar enormemente, a responsabilidade da escola , redimensiona o papel do estudante e do professor. O que era apenas ensino, com o docente como centro do processo, cada vez mais vai se convertendo em  estudo, processo no qual o diálogo entre docentes e discentes assume a cena principal. Somente uma cena assim será capaz de fazer com que a pletora de informações que bombardeiam os jovens se converta em formação.

 

A experiência docente não pode esquecer essa lição de humildade: o estudo é dialógico e significa ensinar aprendendo com o outro. A noção de um conhecimento já feito, pronto e acabado não convence mais. Mesmo em se tratando de sistematizar o conhecimento até aqui alcançado pela aventura humana na terra. Conhecer, portanto, é compartilhar. Somente um conhecimento assim poderá se converter em bem universalmente intercambiável, o maior valor de troca, não fungível e sempre renovável até ao limite da criatividade dos indivíduos. Somente um conhecimento assim contribuirá para deslocar, de forma positiva, os limites entre centro e periferia, promovendo a inclusão e o bem-estar das pessoas.

 

Não é outra a lição que  as manifestações de julho nos deixam. A propósito, lembro que a escola é um espaço privilegiado de produção do conhecimento; mas não é o único. A propósito ainda, lembro as palavras precisas de um sociólogo americano, recentemente falecido: "Não basta ler Marx, é preciso estar atento aos sinais das ruas". A ruas patrocinam, a cada tempo, uma oportunidade formidável de encontro  da experiência acadêmica com a experiência política (da e na polis).

 

E os sinais das ruas, no nosso caso, o que nos comunicam? As ruas exibiram de tudo - do diletantismo à militância programática; do exibicionismo ao vandalismo; do ensaio anarquista ao colaboracionismo ordeiro. Mas alguma coisa, dentro desse vale-tudo, pode estar contribuindo para repor a vontade utópica no lugar mesmo de sua fermentação, ou seja, no interior da tensão, a céu aberto, entre as várias manifestações de poder.

 

Consta que as chamadas redes sociais têm papel importante nas mobilizações de julho. Isso demonstra o potencial educativo de seu uso. As ruas se voltaram contra as instituições políticas em voga; isso também demonstra o papel pedagógico da política, não se devendo subestimar a importância, para a formação da juventude, das atitudes que os homens políticos assumem, das decisões que as casas políticas adotam. Os políticos e os gestores públicos, de um modo geral, não podem esquecer seu lugar na formação das pessoas; o imaginário social está saturado dos modelos que eles oferecem à sociedade. É desses modelos que as pessoas retiram inspiração para se situarem no mundo.

 

Como as mídias, a política pode, também, tanto formar como deformar; tanto conformar como transformar. As mídias enchem a pessoas de informações e de apelo, a política também. O papel da escola, e no seu centro, o papel do professor, é ajudar a converter informação em estudo; o apelo em reflexão, reflexão em convicção, convicção em formação. 

 

Para isto, o professor deve contar com salário decente e formação permanente; e a escola deve contar com instalações e equipamentos. Mas, mais do que isso, a escola precisa de uma interação ininterrupta com a comunidade onde se situa. Em uma palavra, a escola e o professor precisam mobilizar, em seu favor, os poderes públicos e as comunidades.

 

Quero dizer que essa parceria deve ser ativada em todas as oportunidades. Os dias de festa, como o de hoje,  são muito  importantes, expressam reconhecimento e estimulam a memória e a solidariedade; mas não substituem a rotina e o esforço diário de cada um. É essa rotina e esse esforço, hoje muito pesados, que temos todos o dever de transformar em trabalho prazeroso e criativo. A escola é patrimônio de todos, o professor é um monumento intelectual de toda a comunidade.

 

A escola, que se vai convertendo, aceleradamente, em  espaço de insegurança, precisar voltar a ser, urgente e integralmente, o espaço do conhecimento, da criatividade e da convivência. E essa é uma tarefa coletiva. Contem conosco.

 

* José Edilson de Amorim é reitor da UFCG.

 


Data: 15/10/2013