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A licenciosidade do Rio de Janeiro

Wagner Braga Batista

 

O Rio dispõe de licenciosidade peculiar. Diversa da licenciosidade promíscua, atende pelo nome de cordialidade. Talvez seja fruto de alguns caprichos da natureza ou de certa indolência de sua cultura, habitual refratária a desmandos e ausente aos treinos da política do imobilismo, praticada pelos que ocupam o poder. .

 

Talvez por isto, a cidade se ressinta da fatalidade, que a acomete nos últimos tempos.

 

Diversamente da imagem cultivada pela mídia, o Rio de Janeiro não se nutre da violência.

 

Num programa televisivo , destinado à promoção de rasteiras, de gabeiras e de ratoeiras, fazia-se apologia do medo e da insegurança.

 

O atual Secretário de Segurança do Rio de Janeiro valia-se da recorrente máxima: o Rio cultua a violência.

 

Este bom homem, parece-me um puritano. Quiça um pastor luterano. Certamente é um homem rigido e convencido de seus valores numa época em que todos declinam de quaisquer veleidades éticas. Desde modo, à mão de ferro, justa ou injustamente, exerce poder sobre uma cultura que não domina.

 

Só um bovino, cuja baba não reconhece belezas de horizontes próximos, poderia dizer que o Rio de Janeiro cultiva a violência.

 

Estes novos homens da lei,  educados para pregar a nova cidadania, ainda não percebem que eles e todos nós fomos adulterados. Tornamo-nos frutos licenciosos da pirataria liberal que nos constrange a reproduzir ambiguidades. Que nos levam a decalcar a midia plastificada e palavras que não correspondem a nossos reais anseios.

 

O Rio é contingencialmente promiscuo, excludente e denota a escalada das sacanagens.

 

No Rio, os ritos da malandragem e da sacanagem jamais foram coincidentes. Diferenciam-se assim como Jesus e Genuíno.  Uma utiliza-se da argúcia, outra da trairagem, tão em voga, celebrada pelo marketing e pela politicalha  que nos assolam em todo Brasil. No entanto, hoje, nos sentimos esbulhados pela sacanagem.

 

O nobre secretário de segurança, gaúcho por natureza e positivista por convicção, desconhece estas diferenças. Não sabe, e dificilmente saberá, que o Rio de Janeiro é a capital da cordialidade e da amizade súbitas. Apesar das sistemáticas violações praticadas por emergentes e decadentes militantes do mobilismo que nos imobiliza.

 

O Rio de Janeiro pode até ser licencioso, mas sempre será irredutivelmente avesso à sacanagem.

 

Este fim de semana, ouvi perorações de meu amigo Zé Benício, indignado com o tratamento que recebera na sua chegada ao Rio de Janeiro.

 

Fora mal recebido por esta tribo local, que se autodenomina, carioca. Suas injustificadas lamúrias subsistiram apenas ao curto trajeto que separava o ponto de ônibus do portal de acesso à generosidade. Duraram três minutos, não mais. Foram desautorizadas pelos momentos seguintes e pelos séculos vindouros,  que fornecerão consistência a sua convicção derradeira, ninguém escapa à cordialidade e ao acolhimento do Maracanã.

 

Desfigurado pela promiscuidade, que articula heróis da FIFA, benemerentes do erário e  corporações encarregadas de santificar obras públicas, o Maracanã ainda abriga nossas aflições e paixões fulminantes.

 

Zé Benício, um descrente, cedeu à realidade. Em um átimo de segundo, depois de velho, foi fulminantemente arrebatado por uma nova paixão.

 

Embriagado de alegria, a segundos do Juízo Final, Zé Benício tonou-se um repentino tricolor. Diversamente do que nos dizem os evangelhos, a conversão de Zé Benício não nos condenou à espera, demorou menos de um segundo. Foi o tempo necessário para que se tornasse  fervoroso e irredutível tricolor. Sua conversão fulminante foi ovacionada de pé por todos presentes ao Maracanã no dia daquele empate com sabor de vitória.

 

Zé Benício não ousou resistir. Deixou-se contaminar pela índole fulminante do Rio de Janeiro. Não precisou mais do que um segundo para que se tornasse definitivamente apaixonado pelo tricolor das Laranjeiras.

 

Depois do jogo, apesar das dores que o joelho lhe infligia, genuflexo nas arquibancadas, rogava em prantos um minúsculo pedaço do gramado. Dois dedos de terra daquele latifúndio, onde reinaram, desde o início dos tempos, o futebol e a cordialidade.

 

Zé Benício desconhecia a proclamação do notável reacionário, que ilumina nossa  cordialidade.

 

No Rio, dois sujeitos que nunca se viram tornam-se como que súbitos amigos de infância e caem nos braços um do outro, aos soluços. É a única cidade em que pode nascer, entre dois desconhecidos, uma intimidade fulminante.

 

O Rio é portador da síndrome da generosidade e da acolhida irreversível.

 

Relendo nosso incondicional reacionário, Nelson Rodrigues, rememoramos à gentileza perdida.  A indefectível cordialidade dos cariocas, subtraída pelo esbulho político e pela luxúria dos shopings.

 

O Rio de Janeiro de antanho não comportava litígios irreparáveis. Só havia conflito na disputa pela generosidade na hora de pagar o cafezinho em memoráveis botequins de esquina assassinados pela modernização excludente e conservadora desta cidade. Depois dos Fla- Flus, fosse qual fosse o resultado, todos saiam ganhando. Comemorávamos a  gozação recíproca e a piada politicamente incorreta, sabedores de que amigos não sentiriam feridos jamais.

 

 De passagem pelo Rio de Janeiro, vemo-nos como expropriados desta virtude. Sentimo-nos deserdados desta cultura generosa, em meio a conterrâneos afeitos à graça e à ironia, mas irredutivelmente avessos à sacanagem.

 

É claro, estes hábitos generosos se modificaram. O liberalismo exaustivo ensinou alguns de nós meter a mão no bolso dos amigos,  mas não eliminou da vida desta tribo indígena, os cariocas, de privar com todos chegam o saboroso gosto da cordialidade.

 


Data: 14/10/2013