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Artigo - Janaina

Wagner Braga Batista

 

Há alguns dias estive dormindo nos braços de casal de amigos, Alberto e Dilza.

 

Na idade provecta, o conforto da amizade é algo  inestimável, principalmente para aqueles que não disputam a franqueza e o acolhimento de milhares de amigos em redes sociais.

 

Estas amizades raras e rarefeitas tornam-se nosso conforto.

 

Pois bem, compartilhamos memoráveis passagens de vida.

 

Em imagens, gravadas há duas decadas atrás, revimos Janaina e Leonardo, seus filhos, então duas crianças. Enganadas, foram induzidas a gravar involuntariamente registros de sua inocencia.  Leonardo, numa inequivoca demonstração de amor à vida ainda se abstém de comer carne animal. Acrescente-se, desde três anos de idade. Janaina, sequer sabia que se tornaria herdeira da China.

 

Talvez as fantasias, desencadeadas pelas intensas  leituras, as memoráveis aventuras de Marco Polo, o deleite de sonhos inenarráveis, os acenos de jovens da Guarda Vermelha, a suntuosidade confusa do socialismo, tenham-na tornada legatária deste oriente tão longinquo.  Porém a China converteu-se em seu norte, em bussola de vida.

 

Para ser fiel a versos de Drumond ,  Janaina cumpriu a sina, deixou-se atrair pela China.

 

Não sabemos por quê. Conjecturas, atrozes, não respondem nossas indagações. Entorpecem nossa imaginaginação e só contam pontos no receituário de teses academicas. Na vida real nem  ajudam em palpites de jogo de bicho.

 

Graças à indole de Janaina, fomos levados às suposições e hipóteses sobre o magnetismo da China.

 

No acolhedor convivio, especulamos durante quatro e dias e três noites insones, para exaurir uma dúvida: por que Janaina partira em busca da China?

 

A infinitude das vocações humanas nos atormenta.  Agraciados pelo pensamente lógico, obrigamo-nos a buscar e encontrar certezas. Tornamo-nos inaptos a desvendar a gratuidade que nos mobiliza e o fascínio que nos preenche.

 

Esta tensão incontrolável, talvez tenha levado Janaina à China, projetando sua humanidade nesta graciosa gente de olhos pinçados,  assim como eu sou levado, cumpulsivamente, às feiras de Campina Grande.

 

Neste colóquio de fantasias mal elaboradas, perguntávamo-nos sobre nossos fascinios e encantamentos. Sobre nossos passos na vida. Sobre erros e acertos, inevitáveis na existencia humana.

 

Eu também Jamais queria sair do ventre me minha mãe, mas vida, inclemente, obrigou-me a pular fora.  Pulando fora, coexistimos e nos reconhecemos nesta complexa diversidade que nos aproxima do mundo real.  Quando pulamos de nossos devaneios, os pés da cama se convertem em nossos referênciais.  Indicam-nos o chão de onde partimos para os sonhos e por meio do qual retornamos à realidade.

O mundo é uma dinâmica e envolvente contradição. Acolhedor e hostil não apresenta  imagem univoca. Seu atraente exotismo torna-se macerante quando penetramos suas entranhas.

 

E assim ocorre com todos nós e com Janaina , herdeira da China.

 

Esta criança adulta, que transita entre dois doutorados e três continentes sem pedir licença, confabula com mandarins, com principes medievais, com cavalos alados, com aborigenes australianos e com candangos da periferia de Brasilia, depois de orbitar sobre a Terra, tornou-se adepta dos pés da cama.

 

Subito, sua vocação à humildade telúrica pulsa em meu incurável  provincianismo campinense.

 

 Todos nós procuramos neste vasto mundo  locais onde residem relações verdadeiras.  Depois de correr o mundo, decifrar mistérios e elucidar incertezas que nos afligem, Janaina,  resoluta, nos diz que o melhos lugar do mundo é o pé da nossa cama.

 

Com sua vozinha terna e tom afável, avessos à impessoalidade da acadêmia e do mercado,  Janaina nos dizia:

 

- Serei eternamente cidadã do mundo. Fascinada pela China, sou  irredutivel moradora dos pés da minha cama.

 

Após tres dias e quatro noites insones, estava sanado o indecifrável enigma. Poderíamos, Alberto, Dilza e eu retornar ao conforto da cama e das certezas transitórias.

 

No entanto, a ansiedade aflligia este irriquieto viajante nas aguas turbulentas de Brasilia. Manejando velas e lema, corria o risco de perder o rumo. Sem temor, furtivo, saltei da cama e  acordei meus amigos Alberto e Dilza.

 

Como um moderno Ulisses provinciano, que retorna à Itaca, supliquei:

 

- Amarrem-me. Amarrem-me aos pés da cama.

 

Fiel às convicções de Janaina, não queria ceder a impulsos de extravantes  viagens que nos afastam de nós mesmos.  Aos sedutores cantos de sereia do mercado que nos convidam a naufráfios.

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG

 


Data: 09/10/2013